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Entretenimento televisivo

Por muito que me esforce, tenho uma grande dificuldade em compreender a televisão que temos. Principalmente, a generalista. Podia jurar que os directores de programação fazem um esforço consciente para nos agredir com o mais indescritível lixo televisivo! E o mais curioso é que, se isto acontece, não é por haver falta de alternativas. O que se verifica é que os programas realmente bons, ao invés de serem colocados em horários de grande visibilidade, são pontapeados pela grelha sem a menor piedade.

Por exemplo, no que ao entretenimento diz respeito, fui noutro dia agradavelmente surpreendido por um excelente programa. Falo daqueles 15-20 minutos onde a Santa Casa da Misericórdia transmite para todo o Portugal as extracções semanais dos seus jogos. Apresentado pela inigualável Serenella Andrade (terá assinado um contrato vitalício com a Santa Casa?), este programa vê-se relegado para os serões da 2:, ao que parece sem grande critério. E isto é uma pena… É uma pena porque estamos a falar de um programa que alia o entretenimento non-stop (“televisão em movimento”, como se dizia no tempo do saudoso Ediberto Lima) proporcionado pelo frenético bailado de bolas numeradas dentro de umas tômbolas (deixe-se surpreender pelo quão interessante e cativante é olhar durante um quarto-de-hora para umas bolas aos trambolhões dentro de uma máquina), com a vertente cultural (cada lotaria é dedicada a um tema que nos diz muito sobre a nossa identidade cultural – noutro dia era sobre as vindimas!), tudo isto acompanhado por uma selecção musical de extremo bom-gosto, ali entre a música ligeira e o easy-listening.

Nem tudo são rosas, contudo: estava eu já refastelado no sofá, pronto para alarvemente devorar a primeira iguaria a ser servida – a extracção da lotaria nacional – quando a desilusão e a tristeza se instalaram. É que todas as grandes extracções da lotaria que me marcaram decisivamente no meu crescimento enquanto pessoa tinham uma coisa em comum (bom, na realidade tinham mais do que uma coisa em comum, até porque aquilo é sempre mais ou menos igual, mas enfim, esta coisa marcou-me especialmente): a cantoria!

(Haverá por aí alguém que não recorde com saudade este bonito costume? Se quiser ouvir o autor deste texto numa interpretação da clássica extracção da Páscoa de 2002, clique aqui: Lotaria)

Pois é, na extracção que me foi dada a assistir noutro dia não houve nada disso! O que é feito dos cantores?! O que é que se passa aqui?! Será que há uma crise de vocações no seio do cantar de lotaria? Terão os cantores sido saneados? Seriam os cantores o elo mais frágil na bem oleada máquina que é uma extracção da lotaria? Têm que ter o andróide que pega nas bolas, têm de ter a Serenella, têm de ter os representantes do Governo Civil… Então, e os cantores?! Serão eles dispensáveis?! É uma vergonha! E, como sempre, é o apostador que se lixa, ficando privado, assim sem mais nem menos, desta tradição tão bonita…
Enfim, resta-nos esperar que haja uma réstia de bom-senso nos senhores do poder, e que esta singela expressão do cantar típico português volte a conquistar a dignidade que merece. Até lá, temos de nos contentar (e já não é pouco!) com a hipnótica coreografia das bolas na tômbola (a extracção da lotaria ao som d’A Sagração da Primavera, de Stravinsky, é uma experiência mística).

A seguir ao turbilhão de emoções que é uma extracção da lotaria, veio mais um momento pouco apropriado para cardíacos: a extracção do Loto 2.
Isto sim, é nostalgia pura! Nem percebo porque temos um canal como a RTP Memória: basta assistir a uma extracção do Loto 2 para recuarmos 20 anos no tempo. Está absolutamente igual. Até a máquina é a mesma. A mesma! Isto é de tal maneira verdade que a única diferença que se pode detectar entre uma extracção do Loto 2 em 2006 e uma extracção do Totoloto em 1986 é a de que a máquina está mais encardida, fruto da impiedosa passagem dos anos. De facto, a máquina está tão velha que até as bolas ficam presas no mecanismo: o número suplementar, o 33, foi o protagonista de um acontecimento trágico ao ficar preso à saída da tômbola.
Isto pode parecer, consoante a perspectiva, moderadamente engraçado ou absolutamente insignificante, mas a verdade é que, por momentos, o ambiente naquela sala transfigurou-se por completo. A tensão no ar era palpável, e era a consternação e o desnorte que reinavam entre os membros do Governo Civil que, com um ar grave, conferenciavam sobre a infeliz fatalidade. Porém, sob aquele manto de auto-controlo e rigidez, podia-se adivinhar, nas suas expressões, o esgar agonizante de quem pergunta, desesperado, «Porquê? Porquê, catano?!?!?!?! Pensava que iria ser uma extracção sossegada, sem problemas, e agora ACONTECE ISTO!!! Porra, pá!».
E, claro, a tarefa não ficava mais facilitada com a Serenella Andrade que, bem consciente do ritmo dinâmico que se impõe numa transmissão destas (ainda por cima em directo), insistia implacável: «Como é, Srs. Drs.? Posso ir lá mexer na bola? Deixo-a onde está? O que faço?». Por fim, lá se chegou a um consenso, para alívio dos milhares de telespectadores que tinham ficado em suspenso com o acontecimento. A solícita apresentadora foi autorizada a, só desta vez, ir lá tocar na bola, para a empurrar para o seu sítio. E ela assim o fez, com a precaução e o respeito de alguém que se aproxima de um objecto sagrado, ou com o cuidado de alguém que receia que a diabólica máquina a trucide na complicação dos seus milhares de peças.

No fim de contas, quem saiu beneficiado foram os membros do Governo Civil que, sem estarem à espera, ganharam uma estória do caraças para contar lá em casa («Querida, não vais acreditar no que me aconteceu hoje no emprego! Por momentos ainda estive à rasca, mas com o meu sangue-frio lá consegui resolver a situação…»).




De facto, é indecente que tenham retirado a tal cantoria dos sorteios!
Até porque era só por causa disso que eu via as extracções ocasionalmente…
Já agora, é impressão minha, ou a Serenella Andrade está igual desde há uma ou duas décadas? Será que a mulher não envelhece?


Pois, os cantores devem ter ido cantar para outra freguesia. Se calhar estão a tentar a sorte em castings dos Morangos ou da Floribella, pois já é sabido que a nata dos cançonetistas nacionais sai agora dessas magníficas séries.

Coitados.

Quem se vai safando são os Senhores Representantes do Governo Civil. Nestes e noutros concursos. Sempre justificam a existência dum Governo Civil, que, caso contrário seria mais uma entidade misteriosa e soturna.

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