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Heróis da pequenada aventuram-se pela estomatologia

Sabemos que nos aguarda uma experiência invulgar quando ouvimos, numa ida ao dentista, a frase “Ora, então, deite-se aí em cima do Noddy!”.

Há uns tempos caiu-me uma massa que tinha num molar. Lembro-me de pensar, na altura, que era bem capaz de ser boa ideia ir tratar daquilo, um dia qualquer. E, na verdade, foi isso que acabei por fazer. “Um dia qualquer” que calhou a ser largos meses depois do incidente inicial. Isto não estava esquecido; por isso achei de mau tom que esta afecção da boca se tivesse armado em impaciente e, de um dia para o outro, entendesse que era correcto começar a castigar-me daquela maneira. É preciso desfaçatez!

Foi num domingo que começou. Por acaso foi bom porque, na segunda-feira imediatamente a seguir, começavam as minhas férias. Sempre achei que uma coisa que combina bem com sol, areia, mar e esplanadas é a sensação de ter o lado direito da cara preso num torno mecânico, operado por um fervoroso admirador do trabalho de Torquemada.

No dia seguinte, e após uma noite bem passada na companhia do que a indústria farmacêutica têm para oferecer no domínio dos analgésicos, saí em busca de uma clínica de dentista nas proximidades da minha residência. Depois de um começo algo hesitante, lá me indicaram uma clínica que havia “ali na rua de cima, ao lado da engomadoria” e que “era de miúdos”, mas que “parece que tem dentista”. Dar com o local não foi complicado: as gigantescas fotografias de bebés sorridentes e de grávidas esperançosas que forravam a fachada não enganavam.
Dirigi-me à recepção com as reservas naturais de alguém que vai com a certeza de que, daí a quinze segundos, terá gente a rir-se à gargalhada na sua cara por não ser capaz de detectar as mais elementares pistas que lhe são oferecidas de forma tão ostensiva pelo ambiente. Na minha cabeça, aquela senhora sentada atrás do balcão, clicando com o rato, haveria de, mais tarde e quando em família, relatar com estardalhaço que “apareceu lá um indivíduo que, mesmo com as fotografias de putos espalhadas por todo o lado, estava convencido que estava no local certo para tratar de um dente! Ah-ah-ah! Que imbecil…”.
Mas não. Ao meu tímido “ah, tenho aqui um problema num dente… Não sei se me podem fazer alguma coisa…”, ela respondeu com um enérgico “sim, sim! Vamos já tratar disso!”.

A sala de espera, para além dos já habituais números atrasados da Nova Gente e da Caras, tinha também a Pais & Filhos; a televisão não estava no Goucha, mas sim num canal de desenhos animados (foi dessa vez que tive o meu primeiro contacto com o intrigante Manny Mãozinhas); e pelo chão estava espalhado um vasto sortido de brinquedos. Ainda tentei entreter-me com um carro de bombeiros que por lá estava, mas um ranhoso de um puto desatou num pranto, e foi a correr ter com a mãe a dizer que eu lhe tinha dado um soco no olho… No fim de contas, bem mais agradável do que as salas de espera tradicionais.

O consultório é mais um exemplo da vocação da clínica para os cuidados pediátrico. Aliás, isso é desde logo bem visível pela recepção que me foi feita pelo especialista: “Eh pá! Estava à espera de um João pequeno, e aparece-me você com esse tamanho!”. E foi então que proferiu as palavras que nunca esperei ouvir num dentista. Num baile de máscaras tipo Eyes Wide Shut com tema infantil talvez, mas num dentista não. “Deite-se aí em cima do Noddy!”. Há aquela ideia (e eu não estou a dizer que é a correcta) de que ir ao dentista é o equivalente médico “moderado” das violações de discoteca: dão-nos uma droga para ficarmos meio zonzos, e depois abusam do nosso corpo de formas que não gostamos de imaginar (nesta óptica, o equivalente médico “duro” da violação em discoteca será o exame de colonoscopia). Ora, se isto não é, por si, uma perspectiva agradável, quando me disseram para me deitar em cima do Noddy, fiquei com a sensação que não haveria de sair daquele consultório sem um gangbang em cima. Dorido, não de apenas uma cavidade, mas de duas. Nem sei o que seria pior: se o gangbang, se as sessões de psiquiatria a tentar convencer o médico de que tinha sido violado por uma popular personagem de desenhos animados. Felizmente, o Noddy portou-se bem.

Um aspecto que deve ser louvado é a vertente pedagógica destas consultas. O médico, antes de se aplicar na cura da afecção estomatológica que me atormentava, optou por me oferecer uma descrição, plena de detalhes, não só do problema, como do procedimento a seguir. Voltando a uma imagem que, confesso, não gosto muito, é como se dissessem “Toma lá o teu Créme de Menthe, mas atenção que tem uma poderosa droga lá misturada. É só para facilitar o meu trabalho, já que daqui a pouco conto levar-te ali para armazém abandonado, e penetrar-te à bruta…”.
Mais: esta descrição foi auxiliada por esquemas gráficos, ilustrando cortes longitudinais de dentes.

– Está a ver ali aquele desenho?

– Ao lado do quadro do Noddy? (Se há coisa de que não poderemos acusar esta clínica é de falta de coerência: quão fácil seria misturar ao calhas o Noddy com o Tio Patinhas ou com o Homem Aranha! Aqui não. Noddy é Noddy!)

– Sim, ao lado do Noddy… O que se passa com o seu dente é que aquela parte ali de cima não existe, portanto, aquelas veiazinhas ficaram expostas e, entretanto, chegaram a um estado de necrose. De maneira que, o que vamos fazer nesta intervenção de hoje (terá de vir cá mais vezes) é rebentar com esta parte do dente, para depois extrairmos grosseiramente a matéria morta que está cá dentro.

– Isso, pela sua descrição, parece ser extremamente doloroso…

– Nááá… Como o nervo está morto, o mais provável é que nem sequer sinta nada. E para provar isto que estou a dizer, vou começar a mexer nisto sem lhe dar anestesia.

E a verdade é que não doeu. Pelo contrário: muito apreciei quando me eram mostrados os bocados de carne podre que iam sendo extraídos do meu doente dente. Mal comparado, é como se uma pessoa, no final de contas, acabasse por travar amizade com o violador da discoteca, e quisesse até marcar outro encontro com ele.
No geral, foi uma experiência bastante agradável, por entre o surrealismo dos múltiplos Noddies que sorriam ao som da broca, e as boas tiradas humorísticas do médico (a maior parte delas sobre bebidas alcoólicas – espero que ele não use este material nas crianças!).

Já lá voltei por mais algumas vezes e, em todas as ocasiões, a experiência foi igualmente prazenteira. E eu não estou só a dizer isto por estar com medo de retaliações da próxima vez que lá for (nunca se sabe onde é que os leitores do DQD se escondem!)!

Mesmo assim, sempre que o Noddy aparece na televisão, sinto um calafrio.




Até que enfim. Já não estava nada a gostar de esperar tanto tempo para me rir.
Sabes de algum ginecologista com Noddys ou outra coisa qualquer que nos distraia naquela casa dos horrores?


Que saudades dos tempos idos, onde se arrancavam dentes nas feiras, com uma torquês e sem anestesia. Com um bocadinho de sorte, deixavam-te beber um copo de aguardente para desinfectar e vira milho…
Ás vezes, enganavam-se no dente e lá ia um dos bons e tu não podias reclamar porque o barbeiro é que era o dentista e podia-se vingar quando te apanhasse na próxima vez que fosses fazer a barba.
Isto agora com Noddys é tão amaricado, não é?

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