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Capítulo 1

O final da manhã estava calmo e preguiçoso na pequena aldeia de Cruzes Camelo. Igual a qualquer outra tarde de Verão.
Na descida junto ao rio, um pequeno barco a remos atracava. Tratava-se de Olegário Sousa, o senhor-faz-de-tudo de Cruzes Camelo.
Saiu de madrugada para pescar, garantiu ele à dona Teresa do Café Cotrim. No entanto, a garrafa de medronho que levou como companhia, agora misteriosamente desaparecida, deixara antever que a pescaria não seria o prato forte do dia no Café Cotrim.

Pelo sim, pelo não, dona Teresa havia pedido à sua filha Sandra, umas horas antes, que encomendasse uma dose extra de gelo ao padeiro que faz em Cruzes Camelo três paragens obrigatórias por dia. Se Olegário trouxesse mesmo algum peixe de rio que permitisse a dona Teresa servir um prato especial, é certo que algum jovem irritante havia de querer uma Coca-Cola com gelo. “A criançada que pára aqui a visitar com os pais gosta muito dessas coisas americanas!”, refere dona Teresa. “Na minha opinião, as coisas amaricanas são é amaricadas! Hahaha!” E ri-se bastante das piadas à medida que as debita.

Quem vê dona Teresa, à primeira vista, não consegue absorver a profundidade desta sexagenária. Gere o seu negócio com punho forte, contando para isso com a ajuda (forçada) das suas filhas Sandra e Vera. Viúva desde que alguém se lembra de a ver em Cruzes Camelo, dona Teresa Cotrim vive uma vida casta e dedicada. Dedicada a Deus e ao trabalho no Café Cotrim. O único café/restaurante/pensão/snack-bar/casa do povo em Cruzes Camelo. Tem o cabelo sempre impecavelmente arranjado graças a algumas toucas de malha metálica que a sua irmã lhe trouxe de Badajoz há uns anos, complementando a excelência dos xailes pretos – impressionantemente escuros – com que orgulhosamente se ornamenta. Apesar da sua aparente castidade, não faz questão de manter em voz baixa o facto de que deixa a porta do seu quarto destrancada durante a noite. Sempre na eterna esperança que alguma alma caridosa invada o seu espaço, preferencialmente numa noite de lua cheia, e devolva ao seu corpo algumas daquelas alegrias carnais de tempos idos. Se mantiver a luz apagada, melhor ainda. Pois quem não vê é como quem não sabe. E enquanto não souber, fica a indecência entregue aos olhos de Deus. E longe dos costados de Teresa.

E há um bom motivo para um padeiro parar três vezes nesta pacata aldeia. O mesmo motivo que o leva a também vender gelo, para além dos normais produtos de padaria.
E esse motivo deve-se à presença do padre Luís Lúcio em Cruzes Camelo. Graças ao seu problema com a bebida, o padre Luís Lúcio tornou-se um verdadeiro impecilho nas maiores paróquias em que exercia a actividade clerical. Quando não andava embriagado com o fruto das caixas de esmolas, era apanhado a viciar as próprias caixas, trocando as tampas por ranhuras tão finas que só permitiam a entrada de notas, em vez de moedas. O prelado superior até deixava passar algumas destas coisas ao largo, assobiando para o lado e fingindo que eram coisas próprias da idade. Porém, quando Luís Lúcio começou a aliciar pequenas criancinhas para o confessionário, jurando que todos têm algum segredo obscuro para contar, independentemente do sexo, credo ou idade, a relação de Luís Lúcio com a Igreja começou a tomar contornos menos simpáticos. De modo a evitar maiores embaraços, especialmente em vésperas do próximo Concílio do Patriarcado, a igreja recambiou Luís Lúcio para Cruzes Camelo. Conhecendo a realidade desta aldeia de apenas trinta habitantes, sabiam que Luís Lúcio não podia levantar grandes ondas, mesmo que quisesse. Melhor que isso, não havia criancinhas em Cruzes Camelo para o padre Luís Lúcio desvirtuar. Até podia passar os dias embriagado, que não só isso seria uma forma de se identificar com a restante população, como até seria bem vindo, dada a crise dos produtores de vinho da região. Luís Lúcio teria, em Cruzes Camelo, carta branca para desenvolver todas as peculiaridades da sua personalidade. Quem sabe, talvez até daí resultando uma interessante experiência sociológica.

Assim que chegou a Cruzes Camelo, o padre Luís Lúcio não perdeu tempo. Convocou a população para uma assembleia na igreja da aldeia, situada no topo do monte e com soberba vista para o rio, e anunciou que qualquer pessoa com um congelador em casa seria automaticamente excomungada da Igreja! O problema de Luís Lúcio com os congeladores prende-se com o facto de, certo dia, ter sentido alguma sede e ter reparado que a única garrafa de álcool que possuía era um vinho branco de Casal da Garça. É claro que não podia ser consumido à temperatura ambiente. O que é que o Casal pensaria disso? E a Garça? Então vai de espetar com a garrafa no congelador, que aquilo ali esfriaria a coisa num instante e assim que viesse da missa já o produto estaria próprio para consumo. Quis o destino que a missa demorasse mais do que o esperado devido a um desmaio inesperado de uma das raparigas do coro (que mais tarde se veio a saber que foi devido a uma gravidez igualmente inesperada, fruto duma união rápida e inesperada num dos confessionários da igreja). E quando chegou aos seus aposentos, a garrafa havia estalado com o aumento do volume. Foi tempo a mais no congelador.
O padre Luís Lúcio ainda tentou deixá-la a fundir num pequeno balde de plástico. Mas a combinação letal de vinho com pequenos pedaços de vidro era capaz de deixar o mais católico dos crentes de pé atrás. Valeria a pena arriscar a vidinha por causa duma garrafa de vinho? Pior que não sentir o Casal da Garça a atravessar-lhe o estreito naquela noite, só mesmo sentir alguns aguçados pedaços de vidro a alargá-lo. Nem mesmo o padre Luís Lúcio era assim tão fundamentalista. E desde esse dia que jurou nunca mais utilizar um congelador, bem como amaldiçoar todos aqueles que os utilizam.

.. continuará ..




Simplesmente saboroso, uma soberba pitada de boa disposição. Fico á espera de mais capitulos, porque um só é pouco…

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