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Pirata

O seu olhar era rasteiro.
Percorria as ruas de Lisboa, onde os carros se assemelhavam a monstros assustadores e as pessoas a gigantes de duas patas.
Vociferavam grunhidos estranhos. O que será que queriam dizer com esses ruídos?
“Toma, toma!”, ouvia-se por aqui e por acolá.
Pirata olhava, curioso, apenas para perceber que estava a ser gozado. Mas sabia lá? Podia ser comida. Ou carinho.

E o passeio continuava.
Para Pirata, o Rossio não era Rossio. Era rua. Era passeio. Era uma série de postes alinhados ao longo duma perigosa zona alcatroada.
O poste em frente ao Millennium era especial. E um dos preferidos da espécie, vá-se lá saber porquê.
Tudo terá começado em 1989. Na altura o banco ainda se chamava BCP. E foi o poste preferido do Pirata. A partir daí, começou a tradição.

A Câmara Municipal tentou de tudo. Não era conveniente ter uma matilha de cães a mijar diariamente em frente a um estabelecimento que se queria respeitável. Até uma pequena vedação, ladeada por plantas, eles arranjaram. Mas foi uma batalha perdida. Rapidamente se aperceberam que um montão de plantas amareladas e ressequidas davam mais mau aspecto do que a ocasional molha no poste. Vencidos, devolveram o seu a seu dono. Os quadrúpedes ganharam. Não se deve subestimar a capacidade duma espécie que se contenta com pouco. A Biologia ensina-nos que a vida só quer viver, seja a que custo for. Sem preocupações de ordem ou sentido. Isso são problemas filosóficos para entidades pensantes.

Pirata era um rafeiro grande. Comprido. Quando subia a Avenida da Liberdade, parecia que o fazia na horizontal. A versão canina duma limusine. O ruído não lhe fazia confusão aos ouvidos. Talvez os fizesse vibrar mais fortemente quando era novo. Agora não. Ele alimentava-se do ruído. Precisava dele para se sentir forte. E detestava a noite. Era a parte mais fria e incerta do dia. E não se via nada como deve ser. As ruas estavam calmas, mas quem as povoava, nos bairros mais recônditos e problemáticos, não era amigo.

Esta é a história dum cão que conquistou o mundo.
Tal como nós, ele também sonhou. Sonhou com uma vida melhor, com fortunas e posses. É uma característica natural de alguns seres vivos. Subir acima do que se é. Ser-se mais do que aquilo que se tem. Ter mais do que aquilo que se sobe. É o que favorece a evolução.
Às vezes, Pirata era subjugado pelo cheiro a cadela com cio. E calcula-se que deva ter sido pai por mais que uma vez. Verdadeiras matilhas de pulguentos insidiosos, pêlos por escovar e rejeitados civis perdidos numa cidade encontrada.

Esta é a sua história. Muito passeio, algumas quecas, uma ou outra refeição decente por cortesia dum empregado de restaurante mais benevolente, e a ocasional mas obrigatória molha no poste do Millennium, outrora BCP. E dê-se graças por Pirata ter existido em 1989. As coisas nunca mais foram as mesmas. Mas enquanto alguém se lembrar dele, ele continuará a existir.

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