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Sombrero Рum mist̩rio noir

Quantas narrativas tenebrosas guardam as serpenteantes ruas da cinzenta cidade? Das escuras e claustrofóbicas ruelas às gigantescas avenidas impessoais, quanta podridão se esconde? Que sinistros segredos? Que grotescas histórias?

De vez em quando, contudo, há pequenos sinais destas ocultas monstruosidades que se deixam perceber. Não são mais do que discretas manifestações, que passam despercebidas ao comum transeunte, demasiadamente preocupado com o relatório de contas que tem de entregar para reparar nelas. Só um olho treinado como o meu (bom, e o facto de já ter entregue o relatório de contas a semana passada) é capaz de ver além das enganadoras aparências, e adivinhar os contornos da subterrânea trama.

O dia começara pacato. O clima ameno e o ambiente bucólico de Odivelas não convidavam a incursões pelos ameaçadores caminhos da depravação humana. Mas o sinistro, o bizarro e o malévolo, não se guiam pelo Instituto Português de Meteorologia e Geofísica.
Foi no meio da inocência prazenteira de um relvado (um terreno medianamente ajardinado, vá lá) que encontrei o objecto da minha inquietação: um sombrero abandonado.
A incompreensão e a dúvida tomaram conta de mim. Aliás, a primeira coisa que fiz foi partilhar estes sentimentos com um indivíduo que passava, apressadamente. Agarrei, firme, no seu braço e confrontei-o com o estranho quadro. “Veja,” – disse-lhe eu – “veja este sombrero, aqui, abandonado. Como é isto possível?!”. Ele lançou-me um olhar estranho, libertou o braço com um safanão, e mandou-me dar uma curva. Eu ainda insisti e ele, contrariado, lá disse qualquer coisa do género “Como é que quer que eu saiba?! Se calhar foi alguém que o deitou fora!”.
A resposta não me satisfez. Quem, no seu perfeito juízo, deitaria um sombrero fora? Ainda por cima, um sombrero em tão bom estado? Não! Recuso-me a aceitar essa saída fácil. Eu quero acreditar que ainda há salvação para a humanidade, que não vivemos ainda num mundo onde sombreros são deitados fora por capricho ou abandonados ao Deus-dará num qualquer terreno medianamente ajardinado.

Outra hipótese será a do acidente. Haverá por aí leitor que não tenha já sentido na pele, ao menos uma vez na vida, os horrores de perder um item de chapelaria? Bonés, panamás, barretes, gorros e chapéus de abas; tudo artigos vulneráveis a traiçoeiras rabanadas de vento. É bem possível que o sombrero tivesse sido arrancado da cabeça do seu utilizador aquando de uma ida à janela, para sacudir um tapete ou coisa do género. Esta teoria é tão mais verosímil se tivermos em conta toda a discriminação social de que os utilizadores de sombreros são vítimas: Já alguma vez viu alguém, na rua, no metro ou no autocarro, a envergar um sombrero? Pois não! Porquê? Porque há uma terrível pressão social que desencoraja este tipo de coisa. O triste resultado é que o entusiasta do sombrero vê-se obrigado a confinar o uso deste nobre chapéu à privacidade do seu lar. É melhor do que nada, claro. Mas as desvantagens, na altura da lida da casa, por exemplo, são evidentes.
Seja como for, também não me parece que este seja o caso. Se se tem o azar de deixar cair o sombrero da janela, a primeira coisa que se faz, é descer disparado as escadas, e recuperá-lo sem delongas. Mesmo que se esteja nu (isto é, só com o sombrero). O resgate de um sombrero é uma daquelas raras emergências que justifica plenamente andar nu na rua.

Afastadas estas hipóteses, resta-nos a mais repugnante de todas: é possível que o sombrero tente contar uma história de humilhante tráfico humano. No submundo de Odivelas, poderá haver uma rede dedicada ao aliciamento de mexicanos no limiar da pobreza com promessas de prosperidade (o “sonho português”, no fundo), para depois os colocar em situações de escravatura, obrigando-os a revelar os segredos da destilação do Mezcal e da Tequilha, ou a melhor maneira de confeccionar enchilhadas, tacos, burritos e chilli.
Aquele sombrero abandonado poderá ser um desesperado grito de ajuda de um mexicano que, num momento de distracção dos seus captores, e entre a preparação de uma margarita e um prato de nachos com queijo, se desfez do seu bem mais precioso, na esperança de conseguir lançar o alerta que o livrasse das garras dos diabólicos gringos.

O mais triste é que podemos nunca vir a saber qual é a verdade. Passei no mesmo local algumas horas mais tarde. O sombrero tinha desaparecido sem deixar rasto…




Troviscal, desculpa lá, mas acho que procedeste mal. Isto é o mesmo que passarmos a vida a culpar o governo de tudo o que acontece de mal no nosso país, e não fazer nada para melhorar a situação.
Eu teria recolhido o sombrero e tê-lo-ia acomodado na minha casa. Quem sabe, talvez até teria colocado um anúncio nos jornais a reportar o achado.
Lamentar apenas as desgraças (como esta) depois delas terem ocorrido não abona muito a nosso favor.


Tens razão, sim senhor… Eu sinto-me envergonhado e arrependido por não ter tomado a atitude correcta na altura. Suponho que a monstruosidade da situação me toldou o raciocínio (fico fora de mim quando as situações metem acessórios de cabeça).
Colocar um post no DQD acaba por ser uma forma de expiação deste meu pecado.


Eu só tenho encontrado preservativos abandonados. Também fico a bater mal (vá lá saber-se porquê!!)

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