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Grandes vultos esquecidos da nossa História – cap. III

Excertos de uma antologia a publicar

Nota prévia: Com a recente iniciativa da RTP que visa eleger os “Grandes Portugueses” pareceu-me apropriado voltar a esta antologia e publicar, aqui e em primeira mão, mais um dos seus capítulos.
Não muito surpreendentemente, o grande português de que nos vamos ocupar não integra a lista elaborada pela RTP… É o que acontece a quem ousa pensar de forma diferente e a quem não hesita em firmar as suas raízes na contra-cultura! Enfim, incompreendido no seu tempo, e incompreendido agora…

III. Dr. Anacleto Manuel Pestana

Numa chuvosa tarde de Fevereiro de 1942, na freguesia de Panóias (perto de Braga), vinha ao mundo Anacleto Manuel Pestana. Numa terra de gente simples, os pais de Anacleto não escapavam à regra: trabalhadores rurais que pouco conheciam do mundo além da sua terra e da lide que os ocupava diariamente.
Apesar das suas origens humildes, Anacleto evidenciou, desde cedo, uma apetência especial para áreas mais científicas do saber. A este respeito contam as gentes de Panóias, ainda hoje, o episódio em que o pequeno Anacleto, aos sete anos de idade, salvou de uma morte certa por asfixia um animal de pastoreio da família, ao improvisar uma traqueotomia com uma faca de cozinha (o pobre ovino tinha confundido um pneu furado de uma pasteleira com um suculento tufo de erva). É certo que o bicho ficou a balir de uma forma invulgar, mas lá que sobreviveu…

Não foi, por isso, grande a surpresa quando Anacleto Pestana manifestou o seu interesse em ingressar no curso de Medicina.
Mudou-se para Coimbra onde, para além de frequentar a prestigiada Universidade, teve o seu primeiro contacto com a vida cosmopolita e boémia de uma grande cidade. O convívio com os seus colegas de curso, assim como as “noitadas” e a vida desregrada (para dizer o mínimo) que daí advieram, teve um papel tão importante na formação do carácter de Anacleto Pestana como o seu percurso académico.
Apesar dos excessos que pautavam esta fase da sua vida, Anacleto Pestana concluiu o seu curso com distinção, tendo depois feito uma especialização em Oftalmologia. Rapidamente obteve o respeito dos seus pares também nesta área. Publicou numa revista da especialidade um artigo onde apresentava uma terapia revolucionária para o tratamento das cataratas (intitulado “Uma Terapia Revolucionária Para o Tratamento das Cataratas”) que, na altura, provocou algum furor na comunidade científica, mas que, escassos dois anos mais tarde (e algumas dezenas de pacientes cegos), caiu no descrédito pela mão do Dr. Zecarias Barriga, ao ter demonstrado que era “completamente ineficaz e extremamente perigosa”. Anacleto Pestana e Zecarias Barriga nunca mais haveriam de falar um com o outro até ao fim das suas vidas.

Seja como for, o seu estatuto de “jovem promessa da oftalmologia nacional” garantiu-lhe alguns convites para congressos médicos no estrangeiro. Em Junho de 1968, deslocou-se a Londres para assistir a um congresso intitulado “On Blepharitis. Diagnostics and Therapies”. A sua primeira visita à capital inglesa marca um ponto de viragem na sua vida. O estilo de vida londrino (que, nas palavras do próprio, em carta a um amigo, contrastava “radicalmente com o Portugal sombrio, pobrezinho e humilde. Do Fado triste, do povo temente a Deus e a Fátima e sob o jugo da ditadura”) teve um impacto tão profundo no Dr. Anacleto Pestana que – assim o reza a história – terá enviado um telegrama para o hospital onde trabalhava a pedir para que lhe descontassem os dias nas férias.

Sobre os três meses que por lá ficou, poucos pormenores se sabem. Facto é que, ao seu regresso, era um homem diferente. Tinha experimentado, em primeira-mão, os “loucos anos 60”, com tudo o que isso implica, e logo num dos mais borbulhantes focos geográficos do “movimento” e, chegado a Portugal, sentiu-se na obrigação de ser o porta-voz desta cultura, tão estranha aos seus conterrâneos, e de divulgar as mesmas coisas que o tinham apaixonado.
No campo clínico, o Dr. Anacleto Pestana tornou-se num ávido seguidor da investigação científica que, numa América distante, o Dr. Timothy Leary vinha a desenvolver sobre as aplicações médicas do LSD. Mais do que assimilar resultados e deixar-se imbuir da doutrina subjacente (pertenceu ao Dr. Anacleto Pestana a primeira cópia conhecida em Portugal do clássico The Politics of Ecstacy), e assumindo-se como um visionário à sua escala, Pestana começou a desenvolver a sua própria investigação em torno da dietilamida de ácido lisérgico. Nem o facto de ter sido despedido do hospital onde exercia (à custa dos tais três meses de ausência) prejudicou este seu trabalho; quanto muito, terá até ajudado: Pestana regressou à tranquilidade da sua terra natal e passou a fazer parte dos quadros do centro de saúde que abrangia a zona. O carácter campestre da localidade revelar-se-ia o cenário ideal para abrir as “portas da percepção”. Da sua dedicação ao estudo do dito químico (que arranjava nas suas, cada vez mais frequentes, viagens ao estrangeiro) resultou um artigo médico que anunciava as vantagens do uso de LSD-25 em oftalmologia. O artigo, de seu nome “O ácido lisérgico e a midríase da pupila”, não foi levado muito a sério pela comunidade científica, possivelmente pelo facto de nele se encontrarem, lado a lado com terminologia médica, inúmeras referências ao deus egípcio Hórus, a morsas, papagaios de papel e gurus indianos.
Indiferente à polémica em torno do seu trabalho, o Dr. Anacleto Pestana continuou a investigação, chegando a aplicar muitas das suas descobertas nos pacientes que atendia. E se os resultados clínicos que obteve são discutíveis, facto é que se tornou rapidamente num médico querido da população de Panóias e arredores, os únicos que lhe reconheceram, em vida, o seu valor (ainda hoje, se visitar a freguesia de Panóias, encontrará, perto do Largo da Igreja, a Rua Dr. Anacleto Pestana). Em virtude destes seus métodos terapêuticos, alguns estudiosos cépticos atribuem a Anacleto Pestana a responsabilidade pelos frequentes relatos de aparições da Virgem Maria nas imediações da localidade, por aquela altura.

Regressa a Lisboa, em 1971, para ocupar uma vaga no serviço de oftalmologia do Hospital de Santa Maria. Vendo-se, novamente, numa grande metrópole, Anacleto Pestana aproveita para seguir uma outra paixão que tinha trazido de Londres: o Rock Psicadélico.
A ideia era a de criar um agrupamento musical que espelhasse as estéticas a que tinha sido exposto aquando da sua temporada em Inglaterra. Apesar das óbvias dificuldades em encontrar músicos interessados em criar este tipo de sonoridades (ou que, sequer, estivessem familiarizados com elas), Anacleto Pestana começou o processo de composição, influenciado pelos inevitáveis The Beatles ou Pink Floyd (fase Syd Barrett, em especial, com o Piper at the Gates of Dawn), mas também por grupos mais obscuros como os Tomorrow, os The Zombies, a Edgar Broughton Band ou os 13th Floor Elevators. Criou, por esta altura, o seu nome “de palco”: Manuel Cílio.
Nesta fase de grande ebulição criativa, Manuel Cílio travou conhecimento e iniciou uma colaboração com outro nome grande do psicadélico português: Miguel Graça Moura. Esta colaboração acabaria por não ter qualquer resultado prático, alegadamente por “diferenças criativas”, mas também por Graça Moura estar mais interessado em prosseguir o seu próprio projecto: os Smoog (que viriam a lançar um single pela editora Orfeu).

Não podendo contar com Graça Moura, e com um álbum praticamente composto na gaveta, Anacleto Pestana (ou, mais correctamente, Manuel Cílio) optou por assegurar todos os teclados, e começou a recrutar músicos entre os seus conhecidos. Foi assim que nasceu aquela que será, até ao momento, a única banda rock de Portugal composta exclusivamente por médicos (todos do Hospital de Sta. Maria). O line-up era este:

– Manuel Círio: Teclados e voz;
РDr. Gon̤alves Mata-Mouros: Guitarra-baixo;
РDr. J̼lio Meirinho: Bateria e percuss̵es;
РDr. H̩lder Jacinto: Guitarra e sitar.
(nenhum dos elementos, exceptuando Manuel Círio, adoptou nome artístico)

Occhio RosaFoi com este conjunto que Manuel Círio gravou aquele que viria a ser o seu único contributo para a música portuguesa: um álbum conceptual, com música e letras inteiramente da sua autoria, sobre o olho humano.
Chamou à banda Manuel Cílio’s Occhio Rosa, e ao álbum Fóvea Centralis [as minhas desculpas a todos os nossos leitores daltónicos pelo uso da cor mas, que diabo!, é um álbum psicadélico…]

O arrojo deste projecto, sem paralelo na história cultural portuguesa torna-se evidente até pelo nome dos vários temas que compõem esta obra.

Lado A:
1. Introdução: Ungis
2. Ora Serrata
3. Viagem no Globo:
Pt. 1: Humor Aquoso
Pt. 2: Humor Vítreo
4. Mácula Lútea (incluindo Fóvea Centralis)
5. Interlúdio: Limbo Esclerocorneal (incluindo Ângulo Iridocorneal)

Lado B:
1. O Navegante dos Canais:
Pt. 1: Canal de Schlemm
Pt. 2: Canal de Cloquet
2. Zónula de Zinn

Do ponto de vista musical, trata-se de uma obra de uma notável variedade. A abertura é tocante e sentimental, marcada por frases como

«na intermitência do teu tecido musculomembranoso móvel, adivinho o teu Ungis. Que vejo? O implacável labor das tuas Glândulas de Meibomius faz escorrer a solução salina no teu rosto… Deixa-me entrar! Deixa-me entrar!».

Em “Ora Serrata” temos uma composição mais obscura, que oscila entre o minimalismo e a exuberância (sobre ela diria Manuel Cílio: «a ideia é capturar a inconstância do observador que se vê preso no enclave que separa a região não-fotosensível da muito mais complexa região fotosensível»). A terceira faixa já nos mostra um Manuel Cílio mais inocente, brincalhão até, para desembocar no tema título do álbum, o clímax deste primeiro lado, com as suas monumentais escalas cromáticas, e pela emoção desmedida na voz embargada de Cílio quando canta

«bem no centro, no âmago do globo, uma orgia multicolorida de milhões de cones».

Depois da arrebatadora grandeza desta composição, seguem-se o “Limbo Esclerocorneal” e o “Ângulo Iridocorneal”. Dois temas que, hoje, dir-se-iam de chill out, a encerrar a primeira metade do disco.

Na segunda metade, só dois temas: o fulgurante “O Navegante dos Canais” (com o ponto alto nos gritos histéricos de Manuel Cílio, entoando «Deixo a turbulência violenta das correntes do humor aquoso, e encontro-te, atrofiado, seco, mirrado!!!!!!»), e o épico final “Zónula de Zinn”. Dos 19 minutos que dura este tema, 14 resumem-se às mesmas 4 notas, tocadas no teclado e acompanhadas por percussão esparsa, com Manuel Cílio a repetir, como um mantra, «escapo-me à membrana hialodeia, e aninho-me, na segurança da Zónula de Zinn».

Lamentavelmente, esta obra-prima nunca chegaria a ver a luz do dia. Primeiro, a editora dizia que não havia público para o disco, principalmente tendo em conta o seu conteúdo lírico. Manuel Cílio recusou sempre comprometer a sua visão artística. Passados longos meses de indecisão, a editora acabou por ceder, e decidiu editar o trabalho mas, por esta altura, um incêndio de grandes proporções destrói os estúdios de gravação e, com eles, grande parte do material. À calamidade escaparam algumas gravações isoladas, e a totalidade das partituras de Manuel Cílio (profundamente apontadas com indicações rigorosas a respeito de quase tudo).
Este desaire foi o golpe final para os Occhio Rosa que, de resto, nunca tiveram uma convivência fácil. Numa entrevista dada pelo Dr. Hélder Jacinto (o guitarrista), já na década de 80, pode ler-se: «o Anacleto Pestana tinha um feitio complicado e só ficava satisfeito quando impunha a sua vontade sobre o resto da banda. O nosso contributo criativo era igual a zero e, ainda por cima, ele só queria fazer música sobre olhos! Por amor de Deus, eu sou um cardiologista! Quero lá saber de olhos! Ainda se fosse qualquer coisa sobre o pericárdio…».

Com a desilusão, Anacleto Pestana retirou-se da música. Continuou a exercer a profissão de médico até 1979, ano em que foi acusado de tráfico de drogas e, subsequentemente, preso. Viria a falecer na prisão na sequência de um brutal ataque por parte de um outro preso. Ironicamente, a razão da querela que levou ao trágico desfecho prendeu-se com o papel de LSD nas criações artísticas: ambos concordavam quanto à sua importância, mas divergiam quanto ao melhor veículo para essa criação. O agressor pertencera a um grupo etnográfico de cantares e defendeu, até ao extremo, a superioridade desta forma de expressão cultural.

P.S.: Fosga-se! 100 posts!




O que é que se pode comentar sobre um homem com uma vida tão cheia?

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