siga-nos nas redes
Facebook
Twitter
rss
iTunes

Bacalhau com todos (ATENÇÃO: contém material eventualmente chocante)

Nós, os portugueses, dada a nossa familiaridade secular com o bacalhau, habituámo-nos a pensar nele só de duas formas: salgado ou congelado. Ocorreu-me que tal comportamento é redutor e tremendamente injusto para o, simultaneamente nobre e popular, peixe.
Estou em crer que o bacalhau ou, como eu gosto de lhe chamar, o Gadus callarias (numa tradução livre, o “boi do mar”), é, de entre o reino dos peixes, a espécie com uma vida interior mais rica e interessante. É por isso que o DQD apresenta hoje, e em exclusivo, as 1001 faces da personalidade do bacalhau.
E não pensem que isto é uma daquelas piadolas inconsequentes. Nada mais longe da realidade. O que vos proponho aqui nasceu de um aturado estudo, sustentado em bibliografia acreditada pelas mais altas e isentas autoridades na matéria (e não tarda muito estarei a ser convidado para palestras onde exporei as minhas espantosas descobertas perante um auditório deslumbrado que me perguntará, em maravilhamento: «Como sabeis tanto sobre bacalhau?»).
A minha principal fonte para o ensaio que se segue é aquele que considero, a um tempo, a minha Bíblia e o meu livro de cabeceira de eleição. Fica a referência bibliográfica para todos os ictiólogos interessados em aprofundar o seu estudo:

-ROSA -LIMPO, Bertha; BRUM DO CANTO, Jorge e CAETANO, Maria Manuela: O Livro do Pantagruel, Lisboa, Publicit Editora, 1986.

A minha tese é a seguinte: o povo português, na sua infinita sapiência acumulada em anos e anos de convivo com o bacalhau, foi-se tornando consciente das varias facetas do dito peixe, e que esse conhecimento, embora ridicularizado pela moderna e céptica ciência, continua bem presente nos nomes de variadas receitas culinárias. O que se segue será, pois, a apresentação do nome de diversas receitas genuínas (retiradas da referida obra), encarando-as como janelas abertas para a personalidade do bacalhau.

Bacalhau andaluz: O bacalhau andaluz é um bacalhau que, sendo espanhol, tem a inabalável convicção de que é o melhor bacalhau do mundo. Mais ainda: a imagem que tem de si próprio é a de um ser supremo merecedor de veneração por todas as outras entidades existentes no universo. Não confundir com o “bacalhau espanhol” (discutido mais à frente); são diferentes por duas razões: primeiro, os próprios bacalhaus andaluzes consideram-se superiores aos bacalhaus de outras regiões de Espanha e, segundo, os bacalhaus andaluzes receberam este nome por terem sido descobertos por um alentejano de Vila Viçosa, cuja experiência de vida só o habilitava a falar dos nuestros hermanos que lhe estavam mais próximos.

Bacalhau aristocrata: Um bacalhau criado nas melhores escolas do mundo bacalhoeiro, habituado à vida da alta sociedade e que, por isso, não gosta muito de se misturar com a populaça.

Bacalhau arrelvado: Um bacalhau que se esforça por agradar, nem sempre com resultados brilhantes, à malta vegan. Costuma ser visto em concertos straight-edge.

Bacalhau na brasa: Ver “bacalhau rápido”.

Bacalhau em canteiro de jardim: Era uma vez um bacalhau normalíssimo, igual aos bacalhaus que você ou eu podemos comprar em qualquer Feira Nova. Certo dia, este bacalhau, farto da vida monótona que levava, decidiu arranjar um hobby. Experimentou a pesca, mas havia ali qualquer coisa que lhe parecia tremendamente errada. Tentou o aeromodelismo, mas chateava-se com a conversa do Júlio Isidro. Até que encontrou a jardinagem. Nada daquilo que havia experimentado na vida lhe proporcionava tal sentimento de realização, ou tamanha satisfação interior. De hobby inocente, a sua paixão pela jardinagem rapidamente escalou para a obsessão doentia, e de obsessão depressa passou para total e completa loucura. O nosso bacalhau nunca mais foi o mesmo: com cada vez mais facilidade trocava os amigos pela sachola ou ancinho, até a sua vida social se tornar, pura e simplesmente, inexistente. Num estado avançado da sua patologia começou a dormir num canteiro de jardim que construiu para o efeito.

Bacalhau cigano: Três características definem este tipo de bacalhau: i) costuma andar de preto, ii) faz comércio em feiras e iii) desaparece rapidamente quando surge um outro tipo de bacalhau (infelizmente não abordado neste estudo por razões de espaço), o bacalhau polícia.

Bacalhau catita: Também conhecido por “bacalhau beto”. Muito abundante na baía de Cascais, trata-se de um bacalhau que deposita extremo cuidado no seu aspecto: não dispensa o seu sapato de vela, e é frequentemente visto em lojas da Quebra Mar ou Tommy Hilfiger.

Bacalhau constipado: É uma triste realidade do mundo bacalhoeiro. É verdade que a ocasional constipaçãozita calha a todos, mas o que é realmente vergonhoso é o paupérrimo sistema de saúde e segurança social que os bacalhaus têm. A quase inexistência dos mais básicos cuidados de saúde leva a que muitos destes bacalhaus, que seriam facilmente curáveis, vejam o seu estado de saúde deteriorar-se para a pneumonia e, em alguns casos mais trágicos, para a morte. Há que acabar com este escândalo imediatamente! Se os poderosos deste país deixassem o conforto dos seus gabinetes e também fossem viver para o Mar do Norte, garanto-vos que também se constipavam. E depois eu queria ver como é que se safavam sem a Aspirina e o Ben-u-ron.

Bacalhau disfarçado: O bacalhau diz-se disfarçado em duas ocasiões: ou quando vai ao Carnaval de Torres Vedras, onde se mascara de matrafona (o bacalhau é um folião como poucos), ou então, e mais comummente, quando anda metido com uma badeja (o badejo fêmea, Gadus pollachius) nas costas da bacalhoa.

Bacalhau entalado: Antes que os mais depravados (sim, estou a falar de si) comecem a antever uma qualquer piada sobre membros sexuais masculinos a ficarem presos em lugares apertados, deixem-me garantir-vos que não é disso que se trata! “Bacalhau entalado” diz-se do bacalhau quando o mesmo é apanhado pela bacalhoa na pouca-vergonhice com a badeja, e o disfarce não o safa.

Bacalhau escondido: Novatos no mundo da bacalhaulogia confundem-no, frequentemente, com o “bacalhau disfarçado”. Nada mais errado! Este tipo de bacalhau alude à faceta divertida e brincalhona do mesmo: o jogo das escondidas é imensamente popular na comunidade bacalhoeira (entre miúdos e graúdos). Contudo, observa-se este comportamento (ou então não se observa, já que está escondido) ainda com maior frequência numa outra situação: quando o bacalhau é “entalado” pela bacalhoa, ele tende a esconder-se dos amigos para não mostrar as nódoas negras e escamas partidas feitas pela esposa.

Bacalhau espanhol: Parecido com o “bacalhau andaluz”, mas um bocadinho mais egocêntrico.

Bacalhau espiritual: O bacalhau é um bicho muito religioso. Uma prova indesmentível disto é a sua infalível participação na noite da consoada. O tipo “bacalhau espiritual” acaba por seu uma grande categoria que abarca tanto o bacalhau beato que vai à missa no Domingo, como aqueles bacalhaus que afirmam ter poderes sobrenaturais e que, por isso, conseguem realizar milagres e curar os bacalhaus afectados por alguma enfermidade mais incapacitante. Estes bacalhaus costumam organizar “manifestações de fé” em estádios de futebol, sendo os seus seguidores compostos maioritariamente por bacalhaus só com uma barbatana, bacalhaus cegos ou bacalhaus leprosos (também conhecidos por bacalhaus desfiados ou em lasca).

Bacalhau exótico: Outro nome para o raríssimo bacalhau da Amazónia.

Bacalhau friorento: Um bacalhau que, em dado momento da sua pacata vida no Mar do Norte, exclama para os amigos: «Porra, esta água está a 3º C, ó catano! Não acham que é um bocado frio?». O triste destino deste bacalhau ou passa pela ironia de ser pescado e acabar dentro de uma panela bem quente, ou desemboca na tragédia de apanhar uma constipação (e já sabem o que acontece nesses casos).

Bacalhau montanhês: Facção dissidente de bacalhaus que abandonaram o mar, para conquistarem a montanha. Contrariamente aos outros bacalhaus, estes não podem ser pescados. Há, no entanto e para quem estiver interessado, excursões de caça ao bacalhau montanhês. Cabe-me, contudo, avisar que este tipo de aventura não é apropriada para o caçador mais inexperiente: o bacalhau montanhês é uma espécie feroz quando o perturbam no seu habitat, e não são raras as histórias de caçadores que não regressaram destas expedições (se o bacalhau não o matar, a queda no precipício matá-lo-á).

Bacalhau picante: Trata-se de um bacalhau que está sempre “a inventá-la” com a bacalhoa. Para além disto, quando está entre amigos, gosta de contar umas anedotas porcas (por exemplo: «Qual o cúmulo do desespero? Duas lésbicas cegas à procura uma da outra num armazém de bacalhau.»).

Bacalhau podre com tomate e bacalhau podre sem tomate: Um destes diz: «Pois é, sou podre! E depois?! Qual é problema?! Julgas que tenho medo de ti, meu palhaço?! Anda cá! Anda cá se és bacalhau!». O outro acagassa-se.

Bacalhau do professor: Muito apreciado pelos alunos de catequese.

Bacalhau de rapaziada: Já este é muito popular na Casa Pia.

Bacalhau rápido: Ver “bacalhau na brasa”.

Bacalhau recheado com frango (nos países anglófonos é conhecido por “Cod stuffed with cock”): É um tipo de bacalhau habituado às vivências mais extremas da vida nocturna. Casas de strip e bares de alterne já não o satisfazem; este é um bacalhau cujas perversões sexuais atingem um nível tal de deboche que só as consegue realizar no red light district profundo de Amesterdão, ou em Banguecoque. Entrar em pormenores sobre as experiências sexuais deste bacalhau é algo que me está vedado, dada a natureza familiar deste site. No entanto, creio que não há mal em mostrar um pequeno video (não me perguntem como é que o arranjei).

Bacalhau e galinha

Bacalhau rosado: Numa palavra: GAY.

Bacalhau supremo: Parecido com o bacalhau espanhol (muito egocentrismo há no mundo do bacalhau), mas sem ser espanhol, com poder, e com uma vontade de dominar todos os outros bacalhaus… Só há um no mundo (naturalmente, se é supremo…), e parece que anda lá para o lado das Américas.

Finalizo com uma nota pessoal de indignação. Mesmo em livros escritos por especialistas, como é exemplo, embora não seja único (o mesmo acontece nas revistas da Teleculinária), o que utilizei na elaboração deste estudo, há uma omissão imperdoável: falo da “punheta de bacalhau”. É certo que este prato tem o nome mais politicamente incorrecto de toda a gastronomia, mas é importante acabar com a hipocrisia! E, em matéria de investigação científica, devemos por de parte os tabus e tratar as coisas pelo nome. E é evidente que nenhum estudo deste género estaria completo sem uma referência à punheta de bacalhau, também conhecida por “punheta de fiel amigo” (aliás, é daqui que vem a expressão “fiel amigo”: não há prova maior de amizade do que a estimulação manual erótica a um terceiro). E não adianta fazer de conta que o bacalhau não tem necessidades sexuais: trata-se de um animal, muitas vezes solitário, que tem necessidade do ocasional carinho.
É a todos os níveis lamentável o desprezo a que este prato está votado, até porque ele serve de paradigmático exemplo à tese que me esforço por defender (que os nomes dos pratos guardam em si verdades profundas sobre os bacalhaus); caso contrário, por que razão alguém haveria de chamar “punheta de bacalhau” a uma especialidade gastronómica? Só se for por ter tomates à mistura…




Obrigada, dei umas boas gargalhadas o que faz sempre bem à saúde 🙂


mt á frente este teu pensamento…

“caso contrário, por que razão alguém haveria de chamar “punheta de bacalhau” a uma especialidade gastronómica? Só se for por ter tomates à mistura…”

uma grande verdade….=)


A punheta é boa porque é rápida de se fazer e para quando não sabemos o que fazer (para o jantar, claro!)

Deixe o seu comentário