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No sítio do costume

Dois anos após a ocorrência, ainda hoje me é difícil descrever o episódio que presenciei no Pingo Doce das Laranjeiras, perto de Sete Rios, em Lisboa. Mas vou contá-lo o melhor que puder.
Estava na secção de frutas, a tentar escolher laranjas que não fossem espanholas, quando oiço uma gritaria por trás de mim.
“Acudam! Ai acudam, que ele deixou cair uma mão e não liga a ninguém!”.
Eis que me viro e reparo num homem com os seus 45 anos a arrastar-se ao longo do corredor. Dirigia-se em marcha acelerada para a secção de peixe, com uma mão visivelmente decepada, e uma rapariga da caixa corria atrás dele e segurava no suposto membro para lho entregar. Um pequeno rasto de sangue indicava o caminho que o homem havia percorrido. Rapidamente se tornou óbvio que ele não se dirigia à secção de peixe, tendo habilmente curvado a cento e oitenta graus para o corredor de produtos de higiene íntima.
“Provavelmente vai comprar uns pensos e umas ligaduras por causa da mão cortada”, pensei eu, “Tenho de ver isto!”. E embarquei na perseguição da empregada do Pingo Doce, que agora já se fazia acompanhar de uma verdadeira comitiva de populares.
E quanto mais as pessoas gritavam e pediam para o homem parar, mais depressa ele se movimentava. Passou a secção dos pensos e águas-oxigenadas a uma velocidade tal que, mesmo que os ditos primeiros-socorros estivessem do lado da mão não decepada, nunca os conseguiria apanhar à velocidade a que ia. Virou à direita a seguir ao corredor e ouviu-se uma pancada seca. Assim que todos curvámos a última prateleira, a derrapar no chão polido como trinta cães atrás de um gato e seguindo o rasto de sangue, reparámos que se encontrava outra mão no chão! O homem já ia mais lá à frente, fazendo orelhas moucas a toda a gritaria que inundava o supermercado. Lembro-me que alguém se baixou e apanhou a mão, dizendo qualquer coisa como “O melhor é levar esta também! Só espero que depois as ponham nos braços certos.”
Entretanto, o homem cambaleava já no fundo do corredor, visivelmente cansado e sem energias, como um marreco a cair para a frente e com as pernas a tentarem acompanhar o andamento. Foi placado na esquina por um segurança que o atirou ao chão, mesmo antes de chegar às cestas do pão, evitando assim que o pior acontecesse.
Rodeámos o dito indivíduo que se encontrava compreensivelmente perturbado e a estremecer por todos os lados. O sangue jorrava abundantemente do local onde há cinco minutos existiam duas mãos perfeitas com uma aliança algo gasta e uma imitação chinesa de um Rolex. Uma senhora queixou-se que o seu vestido novo ficou sujo com sangue e que assim não podia ser.
Alguém gritou por trás de nós que a ambulância vinha a caminho. E enquanto que algumas pessoas tentavam acalmar o homem e perceber que raio se passava com ele, um segundo grupo, liderado por mim, tentou improvisar um recipiente para se guardar as mãos dele até aparecer ajuda profissional. Usámos uma geleira de campismo que se encontrava em promoção e na qual colocámos algumas postas de bacalhau ultra-congelado Ribeiralves, bem como duas pizzas Marco Bellini e um pacote de meio quilo de gelado Haagen-Daz (Strawberry Cheesecake, um dos meus preferidos). As mãos estavam agora em boas mãos (figurativamente falando, claro).
Os funcionários do Pingo Doce conseguiram acalmar o homem dizendo-lhe que se ele continuasse a espernear como uma barata virada de costas ainda lhe caía a cabeça também. Uma estratégia dotada de alguma insensibilidade, achei. Todavia, eficaz.
A ambulância chegou finalmente. Assim que olhou para o sucedido, o funcionário do INEM coçou a cabeça e confidenciou-nos que já era o quinto caso daquela misteriosa “lepra instantânea” que havia atendido só naquela tarde. Disse-nos “Isto já não há nada a fazer, se for como os outros! Agora vão cair as pernas, os braços, a cabeça e o tórax vai-se abrir! Quando chegar ao hospital vai ser apenas um coração a bater… e por pouco tempo!”. Em seguida perguntou se podia ficar com a geleira pois ia acampar na semana seguinte e aquilo dava-lhe jeito.
O homem foi metido na ambulância, juntamente com os seus membros conservados no recipiente que o enfermeiro cada vez mais admirava, e zarparam em alta velocidade para o hospital de Santa Maria.
Nós, que ficámos para trás, permanecemos calados durante um bocado. Ouviam-se as esfregonas das funcionárias a ensopar o sangue do chão, provavelmente para o cheiro não excitar ainda mais os seguranças.
E fizemos aquilo que fazemos normalmente. Aviámo-nos das nossas compras, pagámos e fomos embora.
Ninguém apresentou queixa, ninguém reclamou, ninguém falou mais sobre o assunto. Foi como se tivesse ocorrido um linchamento do qual ninguém queria ser responsabilizando. Uma daquelas situações que vemos a acontecerem, mas da qual só mais tarde tomamos consciência.
Saí, meti-me no carro com as minhas compras, e fui para casa.
Era capaz de jurar que vi uma ambulância parada na esquina seguinte e um enfermeiro encostado à porta a saborear um gelado da Haagen-Dazs enquanto observava o pôr-do-sol na Avenida Lusíada. Mas achei que talvez fosse apenas uma grande coincidência.
E sabe Deus o que aconteceu às pizzas Marco Bellini e às postas de bacalhau Ribeiralves…

Moral da História: estes casos de lepra instantânea são muito raros. Se algo semelhante lhe acontecer num supermercado, dirija-se imediatamente para a secção de congelados.

Pensem nisto, seus leprosos encarquilhados…

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