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It’s just a ride

Nunca senti vontade de falar de alguém famoso sem o intuito de o devassar com um jogo de palavras qualquer.
Mas hoje vou fazê-lo.
Vou falar de Bill Hicks.
Talvez por ser um comediante que respeito; talvez por ter deixado um legado tão espectacular ao mundo do stand-up, mesmo apesar de ter vivido apenas 33 anos; ou talvez por ter tido uma vida mil vezes mais interessante que a minha e, por isso, sentir necessidade de sublimar a frustração da vidinha que levo.

Diz quem o conheceu que Bill Hicks tinha muitos defeitos.
Como não o conheci pessoalmente mas apenas vi os seus espectáculos e li a sua biografia, acho que o único defeito sério que ele tinha era ser americano.
Suficientemente mordaz para criar uma legião de inimigos na sua terra-natal. Suficientemente inteligente, sarcástico e amado em Inglaterra, a ponto do próprio parlamento comum inglês relembrar publicamente o aniversário da sua morte desde há dez anos para cá.
Não vou contar aqui a história dele, pois é para isso que servem os livros, CD’s e DVD’s disponíveis (uma busca rápida na Amazon dar-vos-á acesso a todas estas preciosidades).
Gostaria apenas de prestar a minha homenagem àquele que foi um dos comediantes mais hardcore de todos os tempos.
A Humanidade precisa de pessoas assim. Precisa de radicais que abram o caminho e que estiquem os limites das fronteiras daquilo que é possível fazer.
Só assim todos os restantes saberão onde podem chegar.
E Bill Hicks ensinou a todos que o humor não deve ter fronteiras e que se deve falar daquilo que bem se entender.
A título de exemplo, Hicks foi o primeiro a ridicularizar a Guerra do Golfo (versão 1.0) numa altura em que comediante algum se atrevia a voltar-se contra a administração de Bush sénior.
E quando achou que os conservadores cristãos mereciam ouvir uma coisa ou duas, Hicks não se inibiu de relatar aquilo que realmente achava da religião e dos religiosos. Idem idem, aspas aspas, para a sua relação com as mais variadas drogas, umas vezes utilizadas por propósitos didácticos, outras vezes por propósitos criativos.

Em Portugal a história é diferente.
A tradição da comédia no nosso país tem-se baseado na Revista à Portuguesa. Nunca existiu, tirando aqueles deliciosos discos antigos do Raúl Solnado, uma filosofia de stand-up dentro das nossas fronteiras.
Isso começa agora a aparecer com o Levanta-te e Ri e, não obstante a qualidade duvidosa da maior parte dos comediantes que lá figuram (alguns deles nem são comediantes mas meros contadores de anedotas), a verdade é que precisamos admitir que programas como esse são um passo em frente. A comédia, tal como nos Estados Ónidos ou Inglaterra, é algo que deveria ser levado a sério (por paradoxal que possa parecer).
Isto é especialmente interessante porque Portugal até é um país com uma tradição humorística muito rica.
Podemos regredir muito ou pouco no tempo, e encontraremos sempre provas literárias que nos demonstram que o humor foi um ponto de passagem obrigatória na vida de quase todos os nossos escritores.
Se começarmos no séc. XVIII, por exemplo, temos Barbosa de Bocage (“Aqui dorme Bocage, o putanheiro: passou vida folgada, e milagrosa: comeu, bebeu e fodeu sem ter dinheiro.” in Poesias eróticas, burlescas e satíricas).
Quem diz Bocage diz Almeida Garrett (O Retrato de Vénus), António Maria Eusébio (A Quinteira da Panasqueira), ou mesmo Camilo Castelo Branco. E porquê parar por aqui? Dezenas e dezenas de outros escritores poderiam ser mencionados. Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Eugénio de Castro, Augusto Gil, o grande Fernando Pessoa (Epithalamium), Almada Negreiros, Jorge de Sena, Alexandre O’Neill, Luiz Pacheco, José Vilhena.
Todos eles dedicaram uma parte da sua vida à escrita de humor.
No caso especial de José Vilhena, com o qual tive o prazer e privilégio de conviver durante uns tempos, pode-se até dizer que ele foi a única força independente que ainda hoje mantém uma dedicação ímpar à imprensa escrita humorística. A sua revista – que já mudou de nome de várias vezes (Gaiola Aberta, Fala-barato, O Cavaco, O Moralista, e agora novamente A Gaiola Aberta) – é hoje, por estranho que possa parecer, a única revista humorística nacional.
José Vilhena é, na minha modesta opinião, o Bill Hicks português da geração passada.

E agora? Quem será o novo Bill Hicks que tirará este país de uma miséria intelectual imitativa do que se faz lá fora e explorará o lado mais vicioso das mentes portuguesas?
É que, admitamos, nós portugueses temos qualquer coisa de especial. Não sabemos bem que porra é, mas sabemos que temos qualquer coisa que o resto do mundo não tem.
E enquanto não acordarmos deste complexo de inferioridade que nos mantém numa espécie de coma criativo, enquanto não nos libertarmos daquele jeitinho idiota que temos de achar que lá fora é que se encontram as grandes cabeças, enquanto não mudarmos a nossa orientação de modo a incluir os bons valores que cá temos em vez de os rejeitar automaticamente, não estamos a dar hipóteses a que este novo “Hicks” apareça.

Moral da história (repetido): às vezes estamos tão perto da floresta que não vemos as árvores.

Pensem nisto, cambada de génios incompreendidos…

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