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Casamentos

Já não era novidade que muita gente não gostou da minha crónica sobre Médicos, há duas semanas atrás. Por isso, não esperava melhor para a crónica sobre Astrologia e Cientologias Parolas. Porém, receber emails com ameaças de morte vindas de astrólogos ofendidos era algo para o qual não me encontrava preparado. E é por isso que gostaria de apresentar aqui um pedido público de desculpas a todos os astrólogos e crentes em astrologia que possa ter perturbado. Prometo nunca mais ofender essa cambada de lamechas e filhos da mãe! Mas esta semana é dedicada a analizar outro fenómeno interessante da sociedade humana, e provar que ainda nos falta muito para sermos mais do que um simples grupo de macacos com cartão de crédito e ligação à internet. A crónica desta semana é dedicada a…

Casamentos. Quem não os adora?
Ao contrário de pequenas hipocrisias como dar o lugar a uma velhinha no comboio e ficar com cara de quem não se importou, um casamento é uma hipocrisia tão grande que não se lhe avista a cabeça nem a cauda.
Mas comecemos do início.
O Hernâni conheceu a Nelinhas num baile qualquer das festas de Nossa Senhora do Passaquatro. Começaram a namorar. Dão longos passeio de cacilheiro entre Belém e a Trafaria, com escala em Porto Brandão. Nelinhas oferece um piriquito malhado a Hernâni como prova do seu amor por ele. Infelizmente, este morre duas semanas depois nas mandíbulas afiadas de um gato (o piriquito. Não o Hernâni!)
Hernâni e Nelinhas estão agora juntos faz um ano. Tiveram alguns pequenos atritos, que souberam resolver com muito bom senso e compreensão q.b. Têm vivido uma paixão intensa, embora não muito cinematográfica. De resto, realista. Apesar de julgarem ter tudo o que precisam para ser felizes, sentem uma pressão familiar e social para que se casem. Decidem fazê-lo. É aqui que começa o fungagá.
Hernâni consente em casar-se, mas apenas se for por separação de bens. Afinal, o seu Renault Clio transformado em discoteca móvel com um autocolante “No Fear” no vidro traseiro é tudo o que ele possui neste mundo (e a gaiola vazia do falecido piriquito). Ia detestar ter de se livrar do bicharoco (do carro. Não do piriquito!) no caso do casamento dar para o torto. Nelinhas, por outro lado, queria a comunhão de bens. Não está minimamente interessada no Clio de Hernâni. Apenas acredita que um casamento deve ser um acto de entrega total, em todos os sentidos.
Têm uma acesa discussão.
No final, Nelinhas cede a Hernâni, mas apenas se ele casar pela Igreja, e não pelo registo, como ele tanto queria.
Têm outra acesa discussão. Mas as coisas resolvem-se.
A intenção de casar ainda não foi anunciada aos familiares mais próximos, e de um lado e do outro já existem contrariedades.
As famílias ficam felizes e radiantes quando ouvem a notícia! Abrem imediatamente uma garrafa de Raposeira, e fazem um brinde aos noivos. Hernâni, porém, já não está muito contente. O anel de noivado que vai ter de comprar custa exactamente o mesmo que o novo sub-woofer da Blaupunkt que ele queria instalar no Clio. E ele não pode comprar as duas coisas. Na hora da verdade, ainda vacila. Mas decide-se pelo anel, e dirige-se para a ourivesaria, carrancudo e a chutar pedrinhas.
Jasus, há agora tanto para fazer!
Decidem-se pela igreja onde querem que a cerimónia seja realizada, mas vêem-se forçados a escolher outra, pois nas três tentativas que fizeram para marcar o casamento não encontraram o padre sóbrio.
Em seguida, segue-se a lista de convidados. O que, diga-se de passagem, é outra tomatada imensa. Devido à natureza tão importante do acto, um casamento deveria apenas ser partilhado pelos familiares e amigos mais íntimos. Mas, por algum motivo, as pessoas desenvolveram a paranóia de que os familiares mais remotos que só se vêem de dez em dez anos ficariam extremamente ofendidos se não fossem convidados. Por sua vez, o tio Inácio Torceapenca, a quem a existência do sobrinho Hernâni só foi recordada devido a ter recebido o convite, acha que a família ficará ofendida se ele, a mulher e os oito filhos não aparecerem. É um ciclo vicioso. Paranóia alimenta paranóia e alimenta paranóia e alim…
Resultado: são convidadas cento e vinte pessoas, cem delas não querendo nem devendo lá estar. Afinal, é um frete do caraças! Vai ser preciso arranjar um fato para se mascararem, escolher e oferecer uma prenda aos noivos, estragar um fim-de-semana lindo e perfeito para qualquer outra coisa, sorrir mais num dia do que se sorri num ano inteiro, lavar o carro, etc.
Depois, ainda há a lista de casamento, que é uma espécie de lista de Pai Natal mas tendo os convidados como vítimas. Pode poupar muito trabalho, muitas frustrações, e ser uma coisa extremamente útil. Mas, para mim, a mensagem emitida pela simples existência de uma lista de casamento é “Não penses nem nos ofereças merda! Compra-nos o que nós queremos.”
Muitos cabelos brancos e úlceras depois, lá se chega a um consenso em relação a tudo, desde a lista de convidados ao menu do copo de água.
E o grande dia chega. Mais entusiasmados que os noivos só podem estar mesmo os pais dos noivos, alegres e salivantes.
Nas respectivas casas dos respectivos futuros cônjuges, as respectivas famílias enchem o bandulho de croquetes e rissóis de camarão, enquanto se empata não se sabe bem porquê.
Partem para a igreja.
A Nelinhas, atrasada como manda a tradição, chega vestida de um branco imaculado e sereno, símbolo de pureza e virgindade. Para efeito do ritual, os amigos mais chegados da noiva tentam esquecer-se que ela era o prato do dia, de modo a melhor poderem apreciar o espectáculo.
E lá vão eles.
Alegres e felizes com a lágrima ao canto do olho, repentinamente transformados em católicos no momento em que metem a pata na casa de Deus, apesar de não irem a uma missa há já vários anos.
A dimensão que a luz toma ao entrar na igreja através dos vitrais proporciona um ambiente adequado ao choro para todas aquelas beatas e lamechas que adoram sentar-se na primeira fila.
O padre dá a seca do costume, de um modo já automático e mecanizado. Os noivos sorriem como dois parvinhos. Na altura do Sim, as mães choram, os pais permanecem estáticos, os miúdos riem por o avô ter adormecido.
Enquanto saem da igreja e são bombardeados com arroz, esparguete, batatas e vários outros acompanhamentos, os noivos -agora cônjuges- pensam secretamente “Tudo vai voltar a ser como dantes. Eu e a Nelinhas vamos pegar onde largámos.”

Continua a não haver evolução nem adaptação aos tempos modernos. Casais que nem católicos praticantes são, por algum motivo, continuam a querer casar pela Igreja. Noivas que são tudo menos virgens continuam a querer aparecer de branco.
Será loucura colectiva?
Será inteligente?…

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