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Express̵es Рparte 1

O meu amigo João Troviscal, que também escreve ocasionalmente neste site, tem uma teoria engraçada acerca da linguagem. Na opinião dele, a linguagem é apenas um veículo que descreve situações e experiências da vida real. Por isso, desde que o sentido seja vinculado de parte a parte, não interessa muito os pequenos atropelos ortográficos que possam existir. E olhem que o homem sabe o que diz! Ele não só é licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa (a Clássica, atenção!); como o fez no tempo em que as licenciaturas ainda duravam uns longos cinco aninhos. (Troviscal, se estiver errado em relação à tua teoria, por favor corrige-me! No fetiche intended…)

Mas se há coisa que eu gosto na linguagem são as chamadas expressões. Normalmente, numa frase apenas, condensam toda a sabedoria popular de várias vidas. Às vezes, até conceitos dúbios são imortalizados em prol duma sonância agradável. Como por exemplo, na expressão “Quem tudo quer, tudo perde.” Na realidade, querer tudo não nos faz perder tudo. É o tentar chegar a tudo, isso sim, que não nos deixa ir a lado algum. Quando se tenta fazer muita coisa, podemos ter a certeza que a quantidade de forças em oposição não nos deixará sair do sítio. E eu sou disso um exemplo vivo. Sempre que me lanço a um novo projecto, faço-o com grande pica. E como novos projectos e ideias se vão sucedendo a um ritmo alucinante, todos me parecem mais interessantes do que aquilo que eu estiver a fazer no momento. Resultado, acabo por nunca completar nada, pois perco o interesse em tudo. (embora, por algum motivo, este site faça oito anos este ano e lá se foi aguentando)

Agora o querer hipotético trata-se apenas dum exercício de masturbação mental. Se nunca tentarmos fazer nada do que pensamos, então nunca saberemos se o conseguiríamos fazer ou não. Isto pode causar estados de frustração, pois acabamos por nunca conhecer as nossas potencialidades. Ou então podemos acreditar cegamente nas nossas capacidades, julgando que seríamos capazes de fazer qualquer coisa à qual nos lançassemos. Portanto, quem tudo quer, pode vir a ter tudo. Quem tudo tenta, nada alcança. De resto, isto é o corolário típico do treinador de bancada nacional que, à falta de determinação para fazer o que quer que seja, sabe que conseguiria ser melhor que os outros no que quer que fosse. Mas estou a divergir do tema.

As expressões que mais me agradam nem são aquelas que demonstram uma sapiência das coisas da vida. São as chamadas expressões-muleta, que ouvimos recitar vezes sem conta (a ponto de já nem ligarmos), e que servem para uma variedade de utilizações.

Tenho até uma teoria. Acho que uma expressão pode ser seguramente mais utilizada, em contextos diferentes, quanto maior for a falta de sentido que possui. Regra geral, quanto menos sentido fizer, mais vezes pode ser utilizada.

O “Coitados! Também têm direito.” é um exemplo desta proposição.

– Dona Maria, sabe quem é que eu vi no outro dia na Praia do Meco? O padeiro e a padeira que vimos em Fátima a fabricar as hóstias! Ali os dois, de mão dada, assim como vieram ao mundo!
РCoitados! Tamb̩m t̻m direito.
Remata a Dona Maria, acabando ali com a discussão.

– Dona Maria, veja lá que hoje dei esmola a um ciganito para ele comprar uma sopa, e passado dois minutos vejo-o agarrado a um Cornetto de morango!
РCoitados! Tamb̩m t̻m direito.

– Dona Maria, já viu que temos um casal de ucranianos aqui à nossa frente nesta missa?
РCoitados! Tamb̩m t̻m direito.

E por aí fora…

Outra expressão que eu adoro, e que representa – para mim – a síntese da revolta popular aliada à ignorância no seu estado mais puro, é “Eles andam é todos feitos uns com os outros!”.

É impressionante como este raio de expressão não quer dizer nada e pode ser usada para quase tudo!

– Dona Maria, já viu isto? Estamos há meia-hora à espera da carreira 726 e agora vêm dois autocarros de seguida!
– Pois…
Рconcorda a Dona Maria, arrebitando o nariz como uma toupeira a cheirar o ar circundante, Рeles andam ̩ todos feitos uns com os outros!

РAtom e esta situa̤om do Futebol Clube do Porto, carago?! O que ̩ que se bai fazer disto, hein?
– Meu amigo…
Рdiz o estranho que se encontra ao seu lado Рeles andom ̩ toudos feitos uns cosoutros, ̩ que o ̩!
(desconheço que haja alguma situação com o FCP, uma vez que não percebo nada de futebol. Mas basta trocar o nome do clube por outro qualquer, que a expressão não deve perder a validade.)

– Estes políticos, raisparta! – grita Toni, enquanto bate com o punho cerrado na mesa na tasca. – O país a arder e eles a fazer férias! Eles andam é todos feitos uns com os outros!! Mendonça, vê lá se me avias melhor esta merda deste pires de tremoços, parece que estás parvo, pá! Se calhar também andas feito com eles! HAHAHA!

– Já viste isto, Pedro? A Sandra passou o tempo todo a queixar-se do bikini da Sónia, que era muito curto, que se via quase tudo e tal, e agora não é que comprou um quase igual?!
– Meu caro Antunes, – reflecte calmamente Pedro, conhecedor de longa data dos intricados segredos da psique feminina, enquanto roça os indicadores um no outro, – elas andam assim, meu amigo, assim! Todas feitas umas com as outras! Nós é que somos parvos!

– Portanto, deixe-me lá ver se eu percebo! – Vocifera, furioso, o cliente na linha da atendimento da Zon – Quer dizer que mesmo que eu agora desista dos vossos serviços, tenho de continuar a pagar as mensalidades durante um ano?! Sabe o que é que eu lhe digo, minha senhora? Vocês andam é todos feitos uns com os outros!!

O potencial desta expressão é virtualmente ilimitado.
Experimente utilizá-la na próxima vez que ouvir alguém a queixar-se de alguma coisa ao seu lado, e está a meio caminho de ganhar um novo amigo.

Outra expressão que é usada facilmente, normalmente por quem não se dá ao trabalho de investigar nada, é o “Está provado que…”
Acho que as pessoas usam maioritariamente esta expressão para tentar atribuir alguma credibilidade a uma frase cuja veracidade é até discutível para quem a profere. Caso contrário, se tivessemos a certeza daquilo que diríamos, não teríamos problemas em descrever também as fontes que corroboram essa veracidade. Logo, o “Está provado!” é quase infalível. Demonstra que houve algum cuidado em obter a informação antes de a mandar cá para fora.

– Sabes, está provado que o cancro de pele tem tanto a ver com a exposição solar prolongada como com a exposição às luzes fluorescentes. Vamos mas é pirar-nos depressa desta loja de roupa!

E se o “Está provado!” por algum motivo não for suficiente para convencer o nosso interlocutor, podemos sempre fazer uso dum advérbio de modo, infalível, e que deve ser sempre guardado para as últimas instâncias. Trata-se, claro está, do “Cientificamente”!

– O quê? Luzes fluorescentes? Estás a passar-te ou quê? – rosna Maria para Miguel, desconfiando que ali haja gato.
– A sério, Maria! Estive a ler sobre isso. Está cientificamente comprovado!

E pimba! Vai buscá-las, Maria! Está cientificamente comprovado!
Numa conversação, estar “cientificamente comprovado” é o equivalente a sairem-nos quatro ases num jogo de Poker. Não dá para desmentir, a não ser que se esteja preparado para recorrer a inúmeros artigos científicos de reputadas publicações que provem o contrário.

Por último, e como trabalho numa empresa, gosto especialmente da expressão “Desculpe. É que tivemos um problema no sistema…”
Trata-se de mais uma frase que não quer dizer rigorosamente nada. Mas como nesta era da informação somos todos um pouco iletrados, o “ter um problema no sistema” é o mesmo que levar um chuto nos tomates. Tiro e queda. E acabou-se a discussão.

РMeu amigo, voc̻ disse que me mandava o cheque no m̻s passado, mas eu ainda ṇo vi a c̫r do dinheiro! O cheque veio de pombo-correio ou qu̻?!
– Desculpe. É que tivemos um problema no sistema. Mas o cheque vai seguir já hoje, não se preocupe.

– Oiça, eu vou de férias amanhã e preciso da 2ª via do meu cartão. Disseram-me que estava pronto ontem. Hoje venho aqui ao banco e afinal ainda não está cá?!
– Sabe, isto anda tudo atrasado. Temos tido alguns problemas no sistema.

(é sempre reconfortante ouvir entidades bancárias queixarem-se que têm “problemas no sistema”)

– Amigo Antunes, desculpe lá mandar-lhe o orçamento urgente que me pediu para o seu pacemaker com tanto atraso, mas é que tivemos um problema no sistema. Se por acaso ainda estiver vivo e a ouvir o seu voice mail, dê-me um toque para o número do costume, por favor. Obrigado.

A vantagem desta expressão é que, sendo universalmente aceite, pode ser utilizada por qualquer um. Pelo que também já me fiz valer dela várias vezes, em situações de maior enrascanço.

Estas foram as expressões que me ocorreram assim de repente. Mais haverá, o que explica o título deste post. E de certeza que toda a gente terá as suas preferidas, seja porque as costuma ouvir, ou porque as costuma utilizar.

Portanto, peço desculpa por discordar da tua teoria, amigo Troviscal, mas não acho que a linguagem seja apenas uma descrição de experiências da vida real. Acho que, no caso específico dos portugueses, a linguagem é apenas mais uma ferramenta que temos à disposição para lançar a confusão e inconstância nas nossas vidas. Como é que podemos pensar em ser um povo evoluído quando passamos a vida a tropeçar na nossa própria língua?




Eu gostava de comentar, mas tive um problema no sistema. No entanto digo-te que está provado cientificamente que eles andam mesmo feitos uns com os outros.
P.S. – Se andas a tropeçar na lingua, podias dar uma ajuda ao António. Elas iam adorar uma língua tão grrrrraaaannnnde.


Soltei uma valente gargalhada quando cheguei à parte do “problema no sistema” porque ainda hoje comentei isso lá no escritório. Adicionalmente, a esse “problema no sistema” pode estar associado algo que “não assume” – tipicamente numa loja, é um desconto que “o sistema não está a assumir”.

E este “sistema” tem as costas muito mais largas do que à primeira vista possa parecer. Já ouvi dizer que “o sistema está lento” ou “o sistema foi a baixo” ou ainda que se encontram “sem acesso ao sistema”.

Continuem com os bons posts! Acabei de ler um sobre mamas de que gostei bastante e cujo tema me surpreendeu.

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