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Retalhos de uma Revolução

Alguns dos mais fieis leitores deste site já se terão interrogado quanto ao meu paradeiro nestes últimos tempos (ao todo, umas duas pessoas). Pois bem, a verdade é que tenho estado arredado do mundo moderno, num local onde a palavra “telecomunicações” não tem significado (até porque falam outra língua). Foram dias emocionantes passados num pequeno país onde a instabilidade social reina, e onde a grande Revolução se adivinha a cada esquina.
Foi precisamente para acompanhar este Processo Revolucionário Em Curso que eu me desloquei até essa nação em convulsão. Aqui ficam, em primeira mão, fragmentos retirados do diário que mantive desses agitados dias.

Sábado, 18-03
Chegada ao aeroporto internacional de El Plátano. O terrível peso do peso do clima tropical fez-se notar de imediato. Mal a porta do avião se abriu, senti-me bafejado pelo próprio Diabo. E o seu hálito não era nada agradável…
À primeira vista, a vida que os locais levam não foge muito àquilo a que nos habituamos a ver como normal. Mas por baixo daquela aparência de harmonia social, eu consegui sentir algo mais – um mudo lamento, um silencioso queixume de quem se vê amarrado a uma condição que sabe não ser a sua..
Os militares que patrulham as ruas parecem, mais que qualquer um, seguros do/ no status quo. Convenceram-se, e talvez com razão, de que a sua presença armada e o seu olhar de censura bastam para manter, eternamente, esta conjuntura social.
À chegada ao hotel, mais uma brecha na construída placidez de El Plátano: um “agitador” era arrastado pelos militares. “Que pasa?”, perguntei. Distribuía panfletos subversivos.

Domingo, 19-03
Encontro com Pablo, um jornalista local. Veio ter comigo ao bar do hotel onde acompanhamos as bebidas com conversa de circunstância. Passado algum tempo, deu-me a entender que não era seguro falarmos ali, e sugeriu que fossemos para sua casa.
Pablo vivia numa casa humilde, pobre mesmo. Levou-me para uma pequena sala onde me deu a provar um rum caseiro, produzido por um seu cunhado. Pediu à mulher e aos três filhos para nos deixarem a sós, e então começou a esboçar o panorama socio-político de El Plátano.
Há 15 anos que o General Rincon dominava com mão de ferro o país. O General não teve qualquer problema em mostrar a sua fibra mal chegou ao poder. Os primeiros anos da sua governação ficaram marcados por intensas perseguições políticas que acabavam geralmente de forma muito sangrenta e, também, muito pública. Não demorou muito para que El Plátano vivesse num estado de paz, mas uma paz induzida pelo terror.
Recentemente, um novo movimento rebelde emergira. Circulavam rumores que o seu principal ideólogo era, nem mais nem menos que, Xavier Ungüento, antigo braço-direito de Rincon.
Pablo mostrava ter nítidas simpatias para com o movimento rebelde e, na realidade, parecia saber mais do que aquilo que me contava. Após alguma insistência, concordou em levar-me a um local nas montanhas cobertas de selva onde, dizia ele, “havia relatos de actividades rebeldes”. Combinamos o encontro para o dia seguinte.

Segunda-feira, 20-03
Saímos cedo numa carrinha a cair de podre. Pablo avisou-me que a minha aventura não seria isenta de perigos e que, embora Rincon tivesse interesse em manter boas relações diplomáticas com o estrangeiro, quaisquer afinidades com o movimento revolucionário, vindas de autóctones ou não, serão implacavelmente punidas.
À saída da cidade, uma barreira militar! Pablo aconselhou-me a ficar calado e “explicou” ao militar que íamos só trabalhar para um campo explorado por um familiar. Para fortalecer a sua argumentação, ofereceu ao interrogante uma das garrafas de rum do seu cunhado. Deixaram-nos passar.
Fui conduzido durante uns 45 minutos-1 hora por sinuosos e esburacados caminhos que, a custo, desbravavam a densa vegetação. Subitamente, um grupo de homens armados saltou do meio do mato. Arrancaram-nos violentamente do veículo, por entre gritos e tiros disparados para o ar. Pablo falava freneticamente numa algaraviada completamente impenetrável para um não-nativo de El Plátano. Eu limitava-me a dizer “Diz Que Disse! Diz Que Disse!”, o que pareceu surtir algum efeito em alguns dos homens que passaram a olhar-me num misto de respeito e admiração. Quando os ânimos serenaram, um outro homem saiu do meio do mato e veio dar um fraterno e entusiástico abraço a Pablo; era Xavier Ungüento.
Após alguma conversa de chacha (“e este tempo, hã?” ou “então como é que vai a revolução?”), Pablo explicou ao rebelde a minha presença: um estrangeiro, disposto a viver com eles durante algum tempo, para depois relatar ao mundo a verdade sobre El Plátano e sobre a luta rebelde. Xavier olhou-me com desconfiança, até que um dos seus homens lhe explicou que eu escrevia para o Diz Que Disse. Então, pediu-me um autógrafo e convidou-me para almoçar consigo (provei iguana!). Pablo despediu-se, entregou a Xavier um garrafão de 5 litros do rum do cunhado, e voltou para a capital.

Quarta-feira, 22-03
Estou nestas malditas montanhas há três dias e já estou farto disto! Sempre pensei que a vida de um rebelde fosse mais emocionante… Tudo o que estes gajos fazem é ficar para aqui, nos seus camufladinhos, a falar do quão bom vai ser quando a justiça voltar a ser soberana em El Plátano. Também, em boa verdade, não há muito mais para fazer… Não há TV Cabo, e a antena só apanha aquelas terríveis telenovelas sul-americanas. Ah, que saudades do “Às 2 por 3” e do “Circo das Celebridades”…
E outro que também já me chateia é o Xavier. Com franqueza, este gajo, para líder rebelde, é um frouxo. Quando o confrontei com a necessidade que tinha de actualizar o DQD, ele limitou-se a olhar para mim, envergonhado, e a dizer: “Não temos internet… Nem telefone temos…”. Esta malta nunca deve de ter ouvido falar em wireless… Está certo que ele ainda tentou remediar a situação: “Podemos é levá-lo lá abaixo, à cidade. É arriscado, mas temos lá um aliado que tem internet… De certeza que ele não se importa que a use…”. A isto respondi, naturalmente: “Fónix! Ir até à cidade?! E que velocidade de acesso é que ele tem naquilo?”. Entredentes, e sem me olhar nos olhos, disse “56 K”, e depois, forçando um falso entusiasmo exclamou “quando destituirmos o tirano Rincon, todo o povo de El Plátano terá acesso a internet de banda larga!”. Não escondi a minha desilusão, e Xavier pareceu acusar o golpe. Retirou-se para a sua cabana, cabisbaixo. Estaria a começar a desanimar?

Quinta-feira, 23-03
Dia carregado de emoções, hoje!
Xavier e os seus homens, talvez por me verem entediado, resolveram incluir-me numa operação que era, no seu entender, “vital para o acampamento”. Deram-me uma metralhadora e fizeram o briefing: aventurar-nos-iamos pela selva, em busca de uma espécie em particular de iguana que, segundo eles, representava um sério e decisivo risco para as tropas (“ataca de noite”, diziam). A missão consistia em matar tantas quanto possível, e trazer as carcaças para o almoço.
Em retrospectiva, é possível que a estória dos ataques servisse só para criar mais emoção (já alguém ouviu falar em noctívagas iguanas assassinas?). Talvez a operação não passasse, de facto, de uma simples caçada para o almoço, mas a verdade é que, na altura, a conversa funcionou. Nos momentos que se seguiram, eu estava em modo de guerra: sentia a adrenalina a correr-me nas veias, o suor a escorrer-me pela face, os sentidos apurados e as mãos trémulas a agarrar a arma. Sentia medo, mas ao mesmo tempo ansiava pelo confronto com o diabólico monstro. Subitamente, lá estava ele! A repugnante criatura de Satã, do alto do galho, lançou-me o seu petrificante olhar inflamado de ódio. Deixei-me tomar por um certo pânico, a besta ensaiou um movimento na minha direcção, e eu sem hesitar esvaziei inteiro um carregador da minha arma. Sucesso! O pérfido bicho jaz morto! Num único gesto, iludi a morte e conquistei almoço!
Infelizmente, no meio da sangrenta batalha, atingi cinco companheiros de batalha (quatro mortalmente, e um ficou tetraplégico)…
War is hell…

Sexta-feira, 24-03
A moral parece andar baixa, entre os guerrilheiros. Será por causa dos acontecimentos recentes? Será por algum desencantamento com a vida revolucionária? Será por tudo isto? Será por causa de estarem sempre a comer iguana? Seja lá pelo que for, o notório é que já andaram mais animados… Andam desmoralizados, descuram a higiene pessoal (há aqui gente que não faz a barba vai para mais de uma semana!) e não prestam atenção ao que andam a fazer. Ainda hoje, à custa disto, houve um acidente com uma granada num exercício. Mais sete mortos a enfraquecer uma força militar já de si débil. E o pior é que entre esses sete estava o cozinheiro! Está bem que só fazia iguana, mas – com a breca! – fazia-a bem! Agora, há por aí um tenente que diz que se orienta bem na cozinha, mas eu tenho as minhas dúvidas…

Sábado, 25-03
“Já não aguento mais iguana! Recuso-me a comer mais disto!” – Foi mais ou menos esta a conversa que tive com Xavier. Há um limite para o que um homem pode aguentar! Ainda por cima, aquele tenente não sabe amanhar convenientemente o bicho!
Xavier mostrou-se compreensivo e prestável. “Vamos tentar arranjar outra coisa”, disse, “Algum prato especial em mente?”. A minha resposta não se fez tardar: “Sandes de salmão com queijo-creme!”. Xavier lançou um olhar consternado. Parece que é difícil encontrar bom salmão fumado no meio da selva… E queijo-creme também…
No entanto, assegurou-me que não pouparia esforços no sentido de arranjar os tão desejados ingredientes. É este o tipo de guerrilha que eu gosto de ver em acção!
Montou uma tropa de elite (três dos seus melhores homens) e rumou à capital.
As horas que se seguiram foram de agonizante espera. Tão expressiva demora só poderia significar uma má notícia. Ninguém leva tanto tempo para ir buscar uma embalagem de salmão fumado e um pacote de queijo-creme!
Tinha a noite acabado de cair quando, finalmente, regressou Xavier. Vinha sozinho. Contou-nos que as coisas tinham corrido mal quando tentavam roubar o salmão (a vida está difícil para guerrilheiros revolucionários), tendo chamado a atenção dos militares que, reconhecendo Ungüento, se lançaram numa perseguição sem tréguas, disparando sem contemplações. Os três companheiros morreram, vítimas do tiroteio, tendo Xavier conseguido escapar com um ferimento superficial no braço direito. Sem meio de transporte, o líder rebelde não teve outra opção senão a de aventurar-se a pé no meio da selva, iludindo o apertado cerco que os militares de Rincon haviam entretanto montado, e suportando o infernal calor de El Plátano…
“Mas tinha valido a pena!”, gritou, enquanto empunhava, com orgulho, uma embalagem de salmão e um pacote de queijo-creme.
“Obrigado” – disse-lhe eu – “mas nós pensávamos que já não vinhas. De maneira que, olha, petisquei uns restos de iguana que para aí estavam… Também, agora isso está quente, com o sol todo que apanhou! Talvez amanhã…”. Xavier acenou afirmativamente, e disse-me: “Meu amigo, eu nunca provei salmão em toda a minha vida… Posso só comer uma fatiazinha com um bocadinho de queijo-creme?”. Senti-me tocado pela honestidade e pela humildade daquele homem. “Claro!”, respondi.

Domingo, 26-03

Hoje de manhã, encontraram Xavier Ungüento morto na sua cabana. A sua expressão transmitia serenidade, por baixo do vomitado ressequido onde ainda se distinguiam pedaços de salmão não digeridos.
Era o fim do movimento revolucionário de El Plátano. O que falhou? Porque razão não foram estes homens capazes de trazer à sua terra um ambiente de liberdade e de igualdade social? O tenente dado à culinária ainda avançou com a hipótese de intoxicação alimentar causada pelo salmão e queijo-creme estragados. Quem poderá, alguma vez, saber ao certo. Por mim, prefiro pensar que foi Deus ou o destino que quis que fracassassem. O tempo de Xavier Ungüento e seus bravos homens ainda não era este. O povo de El Plátano vai ter de adiar a sua revolução…

(Vagamente inspirado por “Viva Vargas!”, de Woody Allen)




Apenas vagamente inspirado 😀
Quem diria que o queijo-creme daria tantos problemas? Por falar niso, alguém sabe do paradeiro do queijo-creme “Querum”? Acho que o nome é este…


Tu és perigoso. Não vás passar férias a mais algum lado ou então leva uma geleira cheia de salmão fumado (ou fuma-lo depois) e embalagens de queijo “Queru” ou dás cabo de todos os los bravos revolucionários.
Já agora, era o hábito que era mal-cheiroso ou era hábito eles terem mau hálito? Esta parte não percebi.
Gostaria (se é que aprendes-te) de saber a receita da iguana. Ando a tentar mudar a minha alimentação.


“Hálito”, de facto. Obrigado pela correcção! Já lá fui mudar.
E o queijo Queru é, de facto, uma daquelas coisas com um estatuto mítico e que faz decididamente parte do nosso imaginário colectivo. Embora, devo dizê-lo, para se conseguir uma boa sandes de salmão e queijo-creme, o Queru não é o mais indicado; eu prefiro usar um queijo tipo Philadelphia. Fica a dica gastronómica.


Mas meu amigo o Queijo Queru(obrigado pela correcção) atinge níveis de complexidade ontológica largamente superiores às do queijo philadelphia, principalmente devido à sua embalagem redonda e amarela. A embalagem branca e pálida do queijo philadelphia não tem o impacto do verdadeiro queijo “macho”. O queijo Queru, não sendo o mais indicado para as sandes de salmão, parece-me ser em todos os níveis superior já que pode ser usado em delícias gastronómicas tais como: Yogurte de beterraba e quijinho, Batata Doce de quijada à Alentejano dorminhoco e a minha favorita Sande(e sim está bem escrito) de Queijo creme re-aquecida com ovo e biscoito de canela.
Recomendo vivamente o abandono desse queijo light e um regresso às origens do verdadeiro quijo-creme!Viva Queijo-Creme Queru, Viva portugal!


Atão e a receitinha da iguana?


Deste-me vontade de comer uma sandes de iguana com Queru.. vou ver se encontro algum desses répteis aqui na cidade e já te digo algo.


…só foi pena isso do Xavier .
Estou convicto que daria um excelente Ditador . Um gajo que pede fatias de salmão é concerteza um gajo com potencial ditaturial que merece ser acarinhado .

Mas isto é sempre assim . Os gajos que pedem filetes de sarinha é que a sabem toda . Esses é que chegam invariavelmente ao poder …

…porcos.

Um abraço ,

The Mechanic


as novelas que passam aí e fazem mais sucesso… são daqui!
os estamos colonizando, espero. eis o troco!
retaliação, já.
nada melhor prá se vingar do que uma novela da globo.

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