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Grandes Vultos Esquecidos da Nossa História

Excertos de uma antologia a publicar.

I. Armando Moita-Figueiredo

1932, o ano indelevelmente marcado pela apresentação pública das polémicas teses de Moita-Figueiredo. É certo que este ímpar pensador sempre fez, talvez inconscientemente, por erigir o seu percurso académico-literário sob o signo da controvérsia e mesmo da incompreensão; no entanto, nem mesmo o seu trabalho anterior pôde preparar a sociedade da sua época para o autêntico sismo ideológico que os seus escritos da década de 30 causaram. Muitos estudiosos (três, no total) de hoje não hesitam em atribuir a esta figura epítetos como o de “génio” ou o de “visionário”, sendo já poucos (não passam as duas dezenas) os que insistem na descrição de “perfeito idiota” ou “imbecil delirante”. No entanto, o quadro era bem diferente aquando da sua conturbada vida: tendo de encetar numa luta solitária contra o autismo e o conservadorismo de um status quo castrador, Armando Moita-Figueiredo raras vezes conheceu o aplauso e o reconhecimento dos seus pares.

Nascido em 1891, Moita-Figueiredo começou bastante cedo a evidenciar ser dono de capacidades intelectuais acima da média. Desde tenra idade demonstrou ter uma grande inclinação e sensibilidade para as artes humanísticas. Logo nos primeiros anos de escola houve quem lhe vaticinasse um futuro promissor como escritor ou poeta. Datam de 1900 (9 anos de idade!) os seus primeiros esboços poéticos, como o exemplo que a seguir se transcreve:

Porque cresce a pereira,
No frondoso campo plantada?
Porque te estendes dessa maneira,
Oh pereira que não és regada?

O estilo nitidamente neo-realista do pequeno poema deixa já antever o carácter pragmático da personalidade de Moita-Figueiredo, ao mesmo tempo que denota também, ainda que em estado embrionário, a sua faceta inconformista.
Animado pelas boas reacções que os seus escritos recolhiam junto dos seus mestres de escola, o jovem Moita-Figueiredo continuou a exercitar a sua veia literária, confinando-se, inicialmente, à produção poética, mas passando mais tarde a experimentar o formato de romance. Neste particular, a sua obra maior será Vento na Eira (publicada quando o autor tinha 15 anos), uma narrativa de 400 páginas centrada na vida e reflexões de uma pereira selvagem perdida nos confins solitários de um campo esquecido. Trata-se de uma obra que, aquando do seu lançamento, não foi muito bem recebida pela crítica especializada: embora concedessem que se tratava de «um exercício de estilo interessante» [in Crítica Literária n.º 12, 1906], não lhe pouparam adjectivos como «inconsequente» [idem] ou mesmo «inútil» [in Jornal Literário n.º 7, 1906], sem contudo deixar de reconhecer em Moita-Figueiredo a promessa de uma escrita de sucesso, atribuindo as eventuais limitações deste seu trabalho ao facto de ser uma «obra de juventude de um autor que, contrariamente à sua pereira, ainda está por amadurecer».
No entanto, a vida e carreira deste promissor autor haveria de mudar radicalmente no dia 1 de Fevereiro de 1908. O regicídio de D. Carlos levou a que o pai de Armando Moita-Figueiredo, um monárquico convicto, decidisse exilar-se num país que, curiosamente, tinha pouco de monárquico: França (estudiosos ficam ainda hoje algo perplexos com esta invulgar escolha do pai de Armando Moita-Figueiredo; a tese mais consensual é a de que esta personagem era algo paranóica e com mania da perseguição e que, por isso, terá optado pelo destino mais improvável, onde seguramente ninguém se lembraria de procurar).
Esta estadia em França (Paris, mais concretamente) mostrou-se altamente influente para o nosso autor. A exposição à cultura francesa teve repercussões claras na sua escrita mas, mais importante ainda, na sua forma de encarar a vida: na grande capital respirava-se uma modernidade e um cosmopolitismo sem paralelo em Portugal, e foi neste contexto que Armando Moita-Figueiredo teve o seu primeiro contacto (uma “epifania”, como lhe chamou) com os mais recentes avanços nos campos da loiça sanitária. Aí, longe do Portugal provinciano em que tinha crescido, Moita-Figueiredo teve o seu primeiro contacto com um bidé. Os anos seguintes ficaram marcados por uma intensa (quase obsessiva) investigação sobre vários aspectos relacionados com este nobre objecto. Desde a sua evolução ao longo dos tempos, passando pelos materiais usados, até aos modelos conhecidos, nada escapou ao carácter curioso de Moita-Figueiredo.
Em 1924, morre o pai de Moita-Figueiredo (num acidente bizarro, ainda hoje por explicar, envolvendo um espartilho). É nesta altura que o nosso autor decide voltar a terras lusas. Mas, em Portugal, as poucas pessoas que ainda se recordavam do nome de Armando Moita-Figueiredo associavam-no ao promissor homem das letras, e não ao amante de bidés que ele, em definitivo, era. Tal não quer dizer que este homem tenha, alguma vez abandonado a escrita; houve, contudo, uma inflexão estilística no seu trabalho que teve o dúbio condão de confundir e alienar os poucos leitores que lhe restavam. O poema que a seguir se transcreve é bem emblemático do trabalho dessa época:

Na pureza do bidé imaculado,
Ela lavava-se avidamente
“Ui, que este bidé está gelado,
Tenho de me lavar um bocado ao de rente!”

O tema invulgar, aliado ao carácter erótico dos poemas, causou grande escândalo nos ciclos literários que não tardaram a condenar Moita-Figueiredo ao desprezo e consequente esquecimento. Isto, contudo, não o preocupava em demasia, uma vez que, por esta altura, não alimentava quaisquer esperanças de seguir uma carreira literária, preferindo dedicar a sua atenção à defesa e divulgação do bidé. Aliás, o seu “dom” literário, por esta altura, estava completamente subordinado a este “fim maior” (as palavras são do próprio).
Em pouco tempo, Moita-Figueiredo granjeou o título de “agitador social”. As suas iniciativas públicas pró-bidé chegaram a levá-lo aos frios calabouços de uma prisão (onde, tragédia das tragédias, não tinha bidé) por algumas vezes. Conta-se que costumava passear-se pelas ruas de Lisboa arrastando atrás de si vários bidés amarrados com uma corda, e que em casa tinha mais bidés do que chávenas de chá.
Mesmo assim, por esta altura, a luta activista de Moita-Figueiredo era encarada com algum desdém, sem conseguir qualquer efeito profundo na sociedade. Isto foi assim até 1932, data em que publica o seu inflamado e polémico Manifesto Sobre os Quartos de Banho da Nação. Trata-se de um escrito crispado e revolucionário, onde a sensibilidade que inundava a sua produção literária anterior é bastante discreta ou mesmo inexistente. Neste trabalho, Armando Moita-Figueiredo faz uma exaltação das qualidades dos bidés, e avança com ideias que, a todos os níveis, não eram do seu tempo: desde a defesa da máxima “um bidé por cada lar português” (ideia impensável nessa altura), até à afirmação do bidé como instrumento polivalente (o seu argumento mais famoso vai no sentido de defender que “o bidé é muito bom para amassar o pão”), passando por ideias tão surreais como a da criação de um híbrido sanita-bidé (o “sané” ou a “bidita”, o autor não chega a manifestar preferência por qualquer uma das designações), ou a da produção em massa de bidés feitos inteiramente de cortiça.
A publicação deste escrito teve um impacto no mundo dos artigos para casa-de-banho semelhante ao de um bidé lançado do cimo do Mosteiro dos Jerónimos. Daí para a frente, para o bem ou para o mal, nunca mais foi possível olhar para uma casa-de-banho da mesma maneira. Tal não quer dizer que, com o seu Manifesto, Moita-Figueiredo se tenha conseguido afirmar no seio da elite bem-pensante do seu tempo: as suas ideias continuaram a ser ridicularizadas por uma enorme maioria. No entanto, teve o mérito indiscutível (e este ninguém lho tira!) de ter iniciado o debate, de ter trazido para a praça pública, de forma definitiva, a questão do bidé!
Infelizmente, este foi um debate que já não pôde contar com Moita-Figueiredo durante muito tempo: pouco após ter editado o seu manifesto, Armando Moita-Figueiredo morre num acidente trágico. A documentação é escassa e pouco clara, mas um estudo recente deixa poucas dúvidas: o nosso autor faleceu ao cair do cimo de uma pereira onde tentava instalar um bidé.




Tens de deixar as drogas.
Por outro lado tudo isto faria sentido se se usassem bidés em França, objecto que me parece ser lá desconhecido; portanto, não foi por ir para França que ele inventou este magnífico sanitário, mas sim pela grande e rara inteligência de Moita-Figueiredo.
Uma curiosidade, talvez desconhecida da maior parte das pessoas é que ele é Moita da mãe e Figueiredo do pai.O apelido Pereira (daí a sua fixação) era da ama-de-leite.


É isto que o Diz Que Disse também é: um espaço de encontro entre eruditos, onde se podem discutir, com seriedade, aspectos culturalmente decisivos do nosso passado (e presente) intelectual.

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